Direito penal do autor e não do fato contradiz garantias
por Flavio Ribeiro da Costa
A culpabilidade é sempre referida a um fato determinado, respeitando-se a autonomia de vontade do autor. No Direito Penal do fato, a culpabilidade constitui um juízo sobre a relação do autor com o fato concretamente realizado, e não em função da forma de conduzir sua vida — sua personalidade — ou dos perigos que no futuro lhe esperam.
De acordo com Roxin, “um ordenamento jurídico que se baseie em princípios próprios de um Estado de Direito liberal se inclinará sempre em direção a um Direito Penal do fato”. E quando o Estado de Direito comete a ousadia de pretender reger seus súditos pelo que são, assume feição teocrática. Com isso, “logra construir uma conexão punitiva desde o delito em forma de periculosidade espiritualizada: substitui o estado perigoso pelo estado de pecado penal”.
O primeiro mandamento, pois, que se extrai da consagração do princípio de culpabilidade é que o legislador constituinte optou pelo Direito Penal do fato, não sendo possível, por conseguinte, tipificar ou sancionar o caráter ou modo de ser, pois, no âmbito do Direito Penal, não se deve julgar a pessoa, mas exclusivamente seus atos.
O Direito Penal deve partir do dogma do fato, de tal modo que não caiba a responsabilização de outros aspectos que não sejam condutas objetivamente perceptíveis. Com propriedade observam Zaffaroni-Pierangeli que “um Direito que reconheça, mas que também respeite, a autonomia moral da pessoa jamais pode penalizar o ser de uma pessoa, mas somente o seu agir, já que o Direito é uma ordem reguladora de conduta humana. Não se pode penalizar um homem por ser como escolheu ser, sem que isso violente a sua esfera de autodeterminação”. Até porque, para que fossem conseqüentes, os partidários do Direito Penal de autor deveriam defender que é suficiente a atitude interna para se castigar o autor e não se ter que aguardar o cometimento do delito.
A distinção entre Direito Penal de autor e Direito Penal de fato não tem apenas valor didático e doutrinário, como pensam alguns. Ainda que na prática haja várias disposições legisladas que se amoldam a uma concepção ligada ao Direito Penal de autor (reincidência, personalidade, antecedentes, etc), isso não significa que deva ser adotado sem qualquer questionamento. O principio de culpabilidade goza de status constitucional, cuja principal implicação é a de justamente não recepcionar uma culpabilidade que não se estribe no Direito Penal do fato.
É preciso, como se disse alhures, mudar a visão do Direito Penal e situar o fato delituoso ao lado e por cima da pessoa do agente. Para tanto, é mister que se realize uma depuração da legislação infraconstitucional de modo que sejam desconsideradas as manifestações de Direito Penal de autor, notadamente quando da aferição da pena.
A tipologia etiológica do Direito Penal do autor tem por fim último detectar os autores sem que seja preciso esperar o acontecimento da conduta. Ou seja, não se coíbe o “subtrair” coisa alheia móvel, mas o “ser” ladrão; não se proíbe matar, mas “ser”homicida, etc. Com o Direito Penal de autor surge o denominado tipo de autor, pelo qual o criminalizado é a personalidade, e não a conduta. Não se despreza o fato, o qual, no entanto, tem apenas significação sintomática: presta-se apenas como ponto de partida ou como pressuposto da aplicação penal.
Nela também se possibilita a criminalização da má vida ou estado perigoso, independentemente da ocorrência do delito, por meio da seleção de indivíduos portadores de determinados caracteres estereotipados: vagabundos, prostitutas, dependentes tóxicos, jogadores, ébrios, etc. Ou também a aplicação de penas pós-delituais, em função de determinadas características do autor, por meio de tipos normativos de autor: reincidentes, habituais, profissionais, etc.
Como tipos de autor se destacam o tipo normativo de autor e o tipo criminológico de autor. De acordo com a concepção do tipo normativo de autor, o fato somente se aplica ao tipo no caso de se ajustar à imagem ou modelo do autor: o que se faz é comparar o fato concreto com o modelo de conduta representado da ação que se espera de um típico autor do delito. É normativo, portanto, porque estabelece uma escala de valores da qual se utiliza como base para valorar os fatos realizados pelo autor. Diferentemente, na concepção do tipo criminológico de autor, o que conta não é um juízo de valor, mas sim a constatação empírica de que a personalidade do autor concorda com as características do criminoso habitual.
O Direito Penal de autor, além de enxovalhar o princípio de legalidade, ao possibilitar que sejam censurados atos anteriores estranhos ao delito, macula o próprio valor da dignidade humana. Para nós, o discurso do Direito Penal de autor propõe aos operadores jurídicos a negação de sua própria condição de pessoa, uma vez que o criminalizado é considerado um ser inferior, seja moral, seja mecanicamente, devendo, pois, ser censurado ou neutralizado. Para referidos autores, até mesmo no moderno Direito Penal do risco, o qual tipifica atos de tentativa e preparatórios no afã de controlar a lealdade das pessoas ao sistema, encontra-se um matiz moralizante, pois a responsabilização estriba-se antes nas expectativas normativas que no aspecto volitivo do agente.
A conclusão resulta inadmissível em um ordenamento inspirado nos princípios garantistas de um Estado Social de Direito, que privilegiam a exaltação de momentos de autonomia e dignidade da pessoa, e que encontra expressão, no que concerne à função da intervenção penal, na satisfação de autênticas instâncias de integração social, reconhecer, em alguns casos, a aplicação do Direito Penal autor. A moderna doutrina tem colocado em evidência que, como corolário lógico do principio de culpabilidade, emerge o Direito Penal do ato ou fato, o qual proclama que ninguém é culpado de forma geral, mas somente em relação a um determinado fato ilícito. “O Direito Penal de ato concebe o delito como um conflito que produz uma lesão jurídica, provocado por um ato humano como decisão autônoma de um ente responsável (pessoa), ao qual se lhe pode reprovar e, portanto, retribuir-lhe o mal na medida da culpabilidade (da autonomia de vontade com que atuou)”. Refere-se, inclusive, ao princípio do fato, o qual pode ser violado por meio de duas formas: pela incriminação direta de atitudes internas ou pela punição de fatos carentes de lesividade, utilizados como sintoma de ânimo.