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Discurso contra o quinto é corporativista e reacionário

Não há melhor remédio do que o quinto constitucional para combater a arrogância do Poder Judiciário e evitar o encastelamento de juízes. Possíveis desvios no processo de escolha dos candidatos devem ser corrigidos, mas o instituto não pode ser colocado em xeque por conta de problemas pontuais. Essa é a opinião do advogado criminalista Técio Lins e Silva, representante da OAB no Conselho Nacional de Justiça.

Afastado há quase dois anos da advocacia para compor o órgão responsável por planejar a gestão do Judiciário, Técio diz que as associações que hoje atacam o quinto são as mesmas que, há cinco anos, bradavam contra a criação do CNJ e hoje pedem socorro a ele. “Mas para aceitar o CNJ foi preciso transformá-lo em um controle interno, não externo”, diz.

No CNJ, chegou a votar contra o que chamou de “interesses meramente corporativos” da OAB por acreditar que o advogado, como conselheiro, é mais do que o representante da Ordem. “É o representante da maneira de a advocacia ver a Justiça.” Isso não significa, contudo, que não levante quase todas as bandeiras de classe.

Nesta entrevista à revista Consultor Jurídico, concedida em seu gabinete no CNJ, Técio Lins e Silva critica enfaticamente juízes que criam obstáculos ao trabalho de advogados, como os que exigem procuração para que os profissionais possam folhear autos em cartório. Direciona especial crítica aos que não recebem advogados em audiência. “É um discurso demagógico, ideológico, de que receber o advogado desequilibra o princípio da igualdade entre as partes, a paridade de armas. Balela! Isso é querer igualar todos na miséria, por baixo.”

Aos 63 anos, Técio não nega nem confirma eventual candidatura ao Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que trocará de comando no começo do ano que vem. Admite a possibilidade de concorrer à direção da entidade de classe, mas diz que a decisão depende das circunstâncias e dos eleitores. “Na política da OAB, ninguém é candidato de si próprio. O advogado só se candidata se tiver um grande apoio.”

Há menos de um mês do fim de seu mandato no CNJ, o advogado publicará um livro com seus votos, manifestações e impressões do Judiciário visto por dentro. O título será Do Outro Lado da Tribuna e deve ser lançado pouco depois de sua volta à advocacia. É uma forma de prestar contas.

Formado pela Faculdade Nacional de Direito (hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro) em 1968, Técio costuma lembrar que entrou na faculdade “levando bordoada” e saiu “levando pancada” por conta do desequilíbrio institucional do país causado pelo golpe militar de 1964. “Fiz diversas provas na faculdade amparado por Mandado de Segurança.” Advogou intensamente perante a Justiça Militar para defender perseguidos políticos. Estreou no Tribunal do Júri ainda estudante, em 1965, e no Superior Tribunal Militar em 1968.

Ocupar a cadeira do CNJ foi sua segunda experiência fora da advocacia. Entre 1987 e 1990, foi secretário de Justiça do Rio de Janeiro, no governo de Moreira Franco. Uma de suas principais conquistas como secretário do governo fluminense foi dar autonomia à Defensoria Pública, que era até então subordinada à sua secretaria. “Hoje, o Rio de Janeiro não tem sequer a Secretaria de Justiça”, lamenta.

Leia a entrevista

ConJur — Como é estar do outro lado da tribuna?
Técio Lins e Silva — Vale para a minha atuação no CNJ a frase sobre os Estados Unidos de José Martí, mártir da luta pela independência cubana contra o jugo espanhol: “Conheço o monstro por dentro. Vivi em suas entranhas”. Apesar de militar na advocacia há 45 anos, trocar de lado por dois anos não deixa de ser uma experiência enriquecedora para conhecer o Judiciário por dentro.

ConJur — Depois de quase meio século trabalhando como advogado, é possível despir a beca e tratar das questões da Justiça com a imparcialidade que o cargo exige?
Técio Lins e Silva — Fiz um grande esforço para não ser um advogado patrulhador, simples representante da corporação. O trabalho de quem assume a cadeira do CNJ é o de trazer o espírito da advocacia para aplicar à Justiça. Uma coisa é ser corporativista, como muitas vezes os juízes são. Outra é trazer a bagagem da carreira para melhor julgar, trazer a visão do advogado para a democratização do Judiciário. Prova disso é que votei contra alguns interesses meramente corporativos da categoria.

ConJur — O senhor pode dar um exemplo?
Técio Lins e Silva — Na questão da lista do quinto constitucional em São Paulo, por exemplo. Esse é um assunto caríssimo para a OAB. O Tribunal de Justiça paulista, em 2005, decidiu não votar uma das seis listas enviadas para escolha dos membros do quinto. Pegou os nomes remanescentes das cinco listas que votou e formou uma lista nova. A OAB reagiu e a discussão chegou até o Supremo, que decidiu que o TJ poderia rejeitar a lista, mas não fazer uma nova, e teria de fundamentar a rejeição. O TJ deu seus motivos. A OAB bateu, então, às portas do CNJ. Sorteado relator, eu não conheci do pedido. O fundamento foi simples: o CNJ nunca poderia atuar como instância revisora de decisões do Supremo.

ConJur — Como a OAB reagiu à sua decisão?
Técio Lins e Silva — Da melhor forma possível. Fui até homenageado pela OAB de São Paulo tempos depois. O presidente Luiz Flávio Borges D’Urso é um democrata. No CNJ, o advogado deve agir com independência, inclusive para garantir respeito e manter a credibilidade da instituição que ele representa. A visão não pode ser simplesmente corporativista. Não é papel do representante da Ordem defender a qualquer custo os interesses que eventualmente a Ordem tenha. Ele é o representante da maneira de a advocacia ver a Justiça.

ConJur — O senhor entende que os juízes que ocupam o CNJ agem sem corporativismo?
Técio Lins e Silva — Nem sempre. Há algumas, digamos, cláusulas pétreas em torno das quais os juízes se fecham e não abrem, por interesses corporativos. São as já conhecidas votações oito a seis.

ConJur — Quem assiste às sessões percebe, de fato, uma divisão entre magistratura, de um lado, membros do MP, sociedade civil e advocacia, de outro.
Técio Lins e Silva — Não acontece sempre, mas há questões impossíveis de discutir. Eles são pouco sensíveis para discutir as relações da magistratura com o mundo exterior, com os advogados.


ConJur — Por exemplo?
Técio Lins e Silva — O tribunal diz que advogado não pode ver processo ou não pode entrar no fórum a partir de determinada hora. Ou estabelece expedientes especiais, como fechar pela manhã e abrir ao público e aos advogados apenas de tarde. A votação dá oito a seis. A justificativa dos juízes é a de que isso é tema de jurisdição, que não podemos mexer na autonomia dos tribunais. Às favas! Temos de mexer com isso, sim.

ConJur — O CNJ ainda recebe muitas reclamações de advogados por restrições ao exercício da profissão?
Técio Lins e Silva — Sim. Vamos a outro exemplo. A lei assegura que advogado poderá ter acesso a qualquer processo civil, penal ou administrativo, mesmo sem procuração nos autos, salvo nos casos em que estiver em segredo de Justiça. Mesmo assim, há muitos juízes que exigem procuração para manejar qualquer processo.

ConJur — Mas qual o problema de exigir procuração?
Técio Lins e Silva — Se um cidadão me procura e pede para que eu advogue em determinada causa, eu preciso olhar o processo para decidir se aceito. Até para descobrir que não há qualquer impedimento, se tem alguém envolvido no processo ligado a mim. Ou seja, eu preciso examinar o processo e é minha prerrogativa. Só se estiver sob sigilo o juiz pode e deve exigir procuração. Na maior parte das vezes, eles restringem a prerrogativa, prevista em lei federal, por meio de portaria.

ConJur — Há tribunais que adotam essa restrição?
Técio Lins e Silva — No próprio STJ há uma norma interna, criada na gestão do ministro Barros Monteiro [saiu da Presidência do STJ e se aposentou em 2008], que exige que o advogado, para ver os autos sem procuração, faça uma requisição ao relator do processo. Há ministros que adotam a regra, outros não. A atual Presidência do STJ, por exemplo, não adota essa regra. Lá, o advogado tem trânsito livre. Mas há ministros que aplicam a norma. Nestes casos, os advogados têm de esperar 15 dias para que o relator autorize a vista dos autos. A norma interna não pode valer mais do que a lei federal que me garante ver o processo em cartório.

ConJur — Há muito juiz fora da lei?
Técio Lins e Silva — Não, não há! Mas há casos absurdos. Por exemplo, o de um juiz do interior de Alagoas, na comarca de Porto de Pedras, que atendeu um advogado de Anápolis, em Goiás, fora do horário de expediente, e sem distribuição do processo, deu uma liminar contra a Eletrobrás para que o advogado levantasse R$ 63 milhões de uma dívida falsamente garantida com um terreno no interior do Paraná. O golpe foi tentado numa agência do Banco do Brasil em Goiás. O gerente da agência acionou o departamento jurídico e conseguiram cassar a decisão. Foi um ato escandaloso. O juiz recebeu uma censura ou suspensão do Tribunal de Alagoas.

ConJur — Pena leve, não?
Técio Lins e Silva — Sim, leve demais. Mas foi revista pelo CNJ, que o puniu com a pena máxima para um caso desses, que é a aposentadoria. O juiz fraudou a jurisdição. Praticou um crime de estelionato fingindo a jurisdição que não tinha. Mesmo assim, alguns defenderam que nós não tínhamos competência para analisar o ato do juiz.

ConJur — A aposentadoria para esses casos não parece um prêmio?
Técio Lins e Silva — É uma loucura. Ele deveria ser demitido sem vencimentos. Porque, veja, não estamos falando de um juiz que julgou mal. Nos casos em que o juiz julga mal, não deve haver punição. O advogado, com um recurso, um pedido de Mandado de Segurança ou Habeas Corpus à instância superior, consegue sanar a decisão ruim. No caso que eu citei, é um cidadão que não é juiz da causa e usa a carteira de juiz para cometer um crime. Nestes casos, não pode haver corporativismo.

ConJur — A magistratura também acusa a advocacia de colocar o corporativismo acima do interesse público na escolha dos candidatos ao quinto constitucional. É exatamente por isso que ele é tão contestado hoje, não?
Técio Lins e Silva — O quinto é um instrumento extraordinário de oxigenação, de democratização da Justiça. Se o instrumento é bem tocado ou está desafinado, é outra história. Os pontos negativos do Judiciário são o encastelamento, o corporativismo, a impenetrabilidade. O quinto vulnera isso, tira a arrogância do Poder Judiciário. Se a OAB escolhe um advogado que não é digno, se existe a instituição dos “amigos do rei”, podemos rever isso. Mas possíveis desvios não podem colocar o quinto em xeque. Os juízes que organizam seminários e bradam contra o quinto fazem demagogia. Estão em campanha eleitoral, adoçando o ouvido dos seus eleitores porque incentivam corporativismo: “Ah, nós não podemos permitir que ninguém de fora se coloque entre nós. Vai sujar a água do nosso rio porque eles não são abençoados”. É um discurso reacionário. Eles também eram os maiores inimigos do CNJ.

ConJur — E hoje o CNJ está a todo vapor...
Técio Lins e Silva — As associações de classe eram as maiores inimigas do CNJ e se transformaram nas suas melhores amigas porque viram que esse Conselho é capaz de curar os tumores do Judiciário. Mas para que o CNJ fosse aceito foi preciso transformá-lo em um controle interno, não externo. A primeira coisa que me entregaram quando tomei posse foi uma carteirinha [tira a carteira do bolso e mostra]. Carteira do...

ConJur — Poder Judiciário...
Técio Lins e Silva — Então, para fiscalizar o Judiciário, é preciso pertencer ao Poder Judiciário. Aí, pode. Mal comparando, o CNJ é como o quinto constitucional. Agora, temos de admitir que a escolha dos nomes que compõem a lista pode ser aperfeiçoada. A Ordem tem de ir buscar os melhores nomes, não ficar esperando as inscrições. Candidatos ruins para o quinto se transformam em maus juízes, que têm raiva de advogados.

ConJur — Há exemplos?
Técio Lins e Silva — Diversos. A pior coisa é encontrar um juiz que é advogado frustrado. “Doutor, fui advogado por seis anos, só depois decidi prestar concurso.” Se o juiz diz isso, pode começar a rezar porque a relação com o advogado não será boa. Eu sempre torço para encontrar o juiz que afirma que nunca quis ser outra coisa na vida porque a causa será bem julgada. Por isso, não adianta mandar o advogado frustrado para os tribunais. Ele não será bom juiz. Em suma, o defeito não é do quinto, é do processo de escolha. Há inúmeros exemplos de juízes bons que vieram pelo quinto constitucional. O ministro Gilson Dipp, por exemplo, é um juiz exemplar. Percebe-se de longe que ele tem algo a mais que o difere dos demais juízes. Originariamente é do quinto constitucional. O presidente do STJ, Cesar Asfor Rocha, é dinâmico, arrojado, diferente do juiz comum porque tem a alma do quinto constitucional. Durante 20 anos, depois que foi indicado ao tribunal, ele almoçou na sede do Conselho Federal da OAB para manter o contato com os advogados. Só parou depois do imbróglio com a lista do quinto. Esses são juízes sobre os quais não há reclamações, nem mesmo de pouco tempo para receber advogados.

ConJur — Como conselheiro, o senhor recebe advogados?
Técio Lins e Silva — Sem hora marcada. A regra do gabinete é receber qualquer advogado, juiz ou cidadão no horário em que chegar. Minha secretária diz os dias em que eu estou no gabinete. Nestes dias, basta bater à porta do gabinete. O juiz que quer tem tempo para receber advogados. No Supremo, por exemplo, o advogado pode chegar a qualquer horário no gabinete no ministro Carlos Britto que será atendido. O ministro Marco Aurélio também atende a todos. Tem a agenda mais apertada, mas nunca deixa de atender. Já o ministro Joaquim Barbosa não recebe advogados. Todos os demais atendem.

ConJur — Qual a justificativa para não receber?
Técio Lins e Silva — É um discurso demagógico, ideológico, de que receber o advogado desequilibra o princípio da igualdade entre as partes, a paridade de armas. Balela! Isso é querer igualar todos na miséria, por baixo. Eu já estive no gabinete do ministro Joaquim Barbosa e pedi para marcar audiência. “Ele não atende advogado”, disse o rapaz que me atendeu. Pedi para falar com o chefe de gabinete e deixar um memorial. “Ele não recebe memorial, doutor”, me disse o chefe de gabinete. Mas, como? Deixei o memorial em cima do balcão. A lei federal diz que o juiz deve receber o advogado. E o juiz, ao menos em tese, deve zelar pela lei, aplicar a lei.

ConJur — O que a OAB pode fazer contra os juízes que não recebem advogados?
Técio Lins e Silva — Reclamar ao CNJ é um bom caminho. Um juiz, certa vez, fez uma consulta para perguntar se era obrigado a receber advogados. O desembargador Marcus Faver, monocraticamente, deu uma decisão exemplar, dessas de fazer história, citou Rui Barbosa e listou os deveres do magistrado. Recorreram e pediram a revisão da decisão. A solução do CNJ para limitar os efeitos da decisão foi interpretar que ela só valia para aquele caso porque era monocrática. Mas, pelo menos, não derrubou a decisão.

ConJur — A que o senhor atribui essas dificuldades criadas por alguns juízes ao trabalho de advogados?
Técio Lins e Silva — Insegurança e despreparo. O juiz tem de estar aberto ao diálogo. Há temas permanentes aqui, pelos quais se devem lutar, como vista de autos sem procuração e acesso do advogado ao juiz. É preciso ter o advogado como descrito na Constituição: indispensável à administração da Justiça. Os maus juízes acreditam que o advogado é dispensável e atrapalha. Um dos papéis do Conselho Nacional de Justiça é impedir que este pensamento, mais do que inconstitucional, anticonstitucional ganhe corpo.

ConJur — Essas discussões não tomam mais energia do CNJ do que deveriam e acabam atrapalhando a gestão do Judiciário, principal atribuição do Conselho?
Técio Lins e Silva — Tomam bastante energia, mas são importantes porque fazem parte da manutenção do Estado Democrático de Direito, sem o qual o Judiciário perde importância. O CNJ é o protetor dos juízes sem padrinho.

ConJur — O senhor é candidato ao Conselho Federal da OAB?
Técio Lins e Silva — Nunca pensei que um dia diria isso, mas meu nome está à disposição (risos). Parece meio cínico, mas não posso dizer que sou candidato, nem negar uma candidatura. É uma possibilidade. Tenho uma visão clara de qual deve ser o papel da Ordem e do papel da advocacia porque trabalho na área há 45 anos. Sou advogado de botar o umbigo no balcão. Sou eu, minha caneta e minha biblioteca. No processo de sucessão, algumas lideranças da Ordem me viram como um nome que pode ser interessante para esse momento da advocacia. Não digo que sou candidato porque, na política da OAB, ninguém é candidato de si próprio. O advogado só se candidata se tiver um grande apoio. Só para registrar a chapa é preciso ter apoio de seis seccionais. Trocando em miúdos, eu admito a possibilidade. Depende apenas das circunstâncias e dos eleitores.