Especialização de varas traz efeitos colaterais
Por Gustavo Filgueiras
A tendência parece irreversível. As varas criminais especializadas proliferam, dentro da percepção intuitiva, mas não necessariamente correta, de que nada há a perder se determinadas matérias, em razão de suas especificidades, peculiaridades ou complexidades, forem julgadas de maneira exclusiva por juízos (e juízes) especializados.
O juiz que não precisa saber de tudo, pode, quiçá, saber tudo sobre um tema restrito, dominando suas extremidades, permitindo atualização adequada, conhecendo e reconhecendo, nas situações da vida, os padrões de comportamento que fatalmente aparecerão, dentro da realidade restrita da especialização em que irá exercer sua jurisdição.
Parece bom e desejável que assim seja, e não se pode deixar de reconhecer que, até certo ponto, a especialização contribui positivamente para uma prestação jurisdicional mais eficiente (com todas as reservas que a noção de eficiência suscita, quando se fala de Direito e processo penal).
O que se pode dizer contra essa intuição generalizada? Os paralelos são inevitáveis: acionado por uma reclamação trabalhista, não procurarei, por certo, um tributarista; acossado por dores na coluna, temerárias serão as prescrições de um oftalmologista. O que opor, portanto, a que esse princípio seja estendido àqueles responsáveis por dizer o Direito?
A rotina forense tem nos trazido, nesse tocante, uma resposta inesperada, um efeito colateral indesejado: a transformação do juiz especializado no Guardião do Bem Jurídico Tutelado pela matéria de sua especialização. Assim, o juiz que deveria ser o protetor da Constituição, do devido processo legal e zelador de sua própria isenção, transmuda-se em protetor do bem jurídico objeto de sua especialidade.
A imparcialidade, por mecanismos psicológicos e sociais sutis, dentre os quais a demanda da própria sociedade, vai cedendo lugar a uma posição de combate, em que a proteção ao bem jurídico específico se torna mais importante do que a proteção dos direitos e prerrogativas do jurisdicionado. O foco em determinado bem jurídico tutelado, gerado pela especialização, parece criar um comprometimento do magistrado com a preservação da matéria que a especialização visa tutelar, em detrimento da observação do devido processo legal e da imprescindível isenção.
Os titulares das varas especializadas em evasão de divisas, lavagem de dinheiro ou Lei Maria da Penha, acabam se identificando — também porque assim são identificados pela sociedade — com os respectivos bens jurídicos. Convidados para palestras, serão perguntados sobre sua visão sobre o ‘combate’ à evasão de divisas, discorrerão sobre os percalços na evitação da lavagem de dinheiro, ou ainda em como anda a evolução da proteção da mulher após a edição da lei. Todas preocupações legítimas, mas a questão é: cabe ao juiz a posição de falar em nome da proteção dessas questões?
Antes de ser o mestre de sua especialização, ou o guardião de bem jurídico específico, o juiz, no processo penal, é o guardião de direitos previstos na Constituição. Identificar-se com a guarda de bens jurídicos caros à sociedade é, sem dúvida, mais interessante do que ser um tedioso observador do devido processo legal. Mas trata-se de uma degradação de sua função, em um processo penal de partes, que só se oxigena na presença de um juiz imparcial.
A especialização dentro da matéria criminal vem causando essa identificação excessiva, seja pela demanda externa (como a sociedade vê e o que espera desse juiz especializado), seja do ponto de vista subjetivo: sua auto-imagem vai se construindo não como, exemplificativamente, o juiz da Vara de Violência Doméstica, mas sim como o de juiz de Proteção contra a Violência Doméstica. A desejável posição equidistante das partes vai sendo perdida. Os denominadores comuns com a Polícia Judiciária e o Ministério Público ganham espaço.
O juiz guardião do bem jurídico tutelado é uma distorção, demonstrando que a especialização excessiva em matéria criminal traz, sim, um efeito colateral, que por atingir a prestação jurisdicional no que ela tem de mais vital — a imparcialidade do magistrado — merece reflexão da sociedade jurídica.