Judiciário está maduro para usar poder político
Por Maurício Cardoso e Alessandro Cristo
As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral que mudaram o sistema político brasileiro sem que o Congresso Nacional editasse sequer uma lei foram exemplos tardios de um poder que o Judiciário tinha há mais de vinte anos, mas que, por timidez, só agora pôs em prática. Para o professor e constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, as decisões que ditaram as regras da fidelidade partidária no país no ano passado foram exemplos práticos das prerrogativas dadas pela Constituição ao Poder Judiciário diante da inércia do Legislativo.
A iniciativa das cortes superiores, no entanto, traz efeitos colaterais da mesma ordem, na opinião do especialista. “Trazer questões políticas para o Poder Judiciário acarreta consequências também políticas”, disse em entrevista à revista Consultor Jurídico. Isso explica as críticas sofridas pelo Supremo, por supostamente invadir competências alheias ao criar entendimentos que devem ser seguidos como normas.
A nova postura do Supremo fica evidente, segundo Ferreira Filho, pela forma como os ministros passaram a interpretar e aplicar o Mandado de Injunção. Hoje, essas ações provocam o Supremo a determinar que o Legislativo edite leis faltantes no ordenamento jurídico. Até muito recentemente a Corte não reconhecia a natureza mandatória do dispositivo.
Mas não são só as cortes superiores que têm se movido nessa direção. As instâncias inferiores da Justiça também têm agido de forma mais presente em questões que envolvem o Executivo e o Legislativo, como nos casos em que é chamada a resolver se os governos devem ou não fornecer medicamentos caros a pacientes do Sistema Único de Saúde.
Ferreira Filho também fala das incongruências do Judiciário em relação aos princípios democráticos, critica a forma de escolha de ministros do Supremo pelo presidente da República e relativiza as liberdades democráticas concedidas pela Constituição à população, que considera terem de se adequar à realidade social e econômica de cada nação.
Profundo conhecedor da história constitucional do país, Manoel Gonçalves Ferreira Filho já foi diretor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Hoje é advogado e presidente da Associação Brasileira dos Constitucionalistas. É doutor Honoris Causa da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e doutor em Direito pela Universidade de Paris.
Sua experiência não se resume ao Judiciário. Foi vice-governador do estado de São Paulo no governo Paulo Egydio, entre 1975 e 1979, e secretário estadual da Justiça. No Executivo federal, foi também secretário-geral do Ministério da Justiça entre 1970 e 1971, e secretário do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana de 1969 a 1971. À epoca, o presidente era o general Garrastazu Medici e o ministro da Justiça, Alfredo Buzaid.
Leia a entrevista
ConJur — Até onde a Justiça pode agir sem interferir nos demais Poderes?
Manoel Gonçalves — A Constituição de 1988 tinha algumas potencialidades que ainda não estavam bem percebidas há dez anos. Trazer questões políticas para o Poder Judiciário acarreta consequências também políticas para o Judiciário, aspectos negativos de um poder político, que é como o Judiciário acaba sendo encarado. Esse é um fenômeno claro que tem se acentuado cada vez mais.
ConJur — A Constituição permite que o Judiciário atue em áreas exclusivas do Executivo e do Legislativo?
Manoel Gonçalves — A Constituição abriu caminhos, que o Judiciário aproveitou. Ele absorveu tarefas típicas dos outros Poderes. Quando a Justiça atua, por exemplo, no controle de políticas públicas, ela não se limita mais a simplesmente dizer se algo é legal ou não. Ela frequentemente faz exigências, impõe condições, determina que se faça isso ou aquilo. Um exemplo claro é o de medidas judiciais que concedem aos indivíduos o direito de receber do governo federal remédios que não estão na lista dos bancados pelo Sistema Único de Saúde.
ConJur — Esse é um caso de interferência no Executivo?
Manoel Gonçalves — Sim. É um problema grave para o Estado, porque perturba a administração da saúde, altera prioridades e importa em dispêndios não previstos no orçamento de estados e municípios. Há arbitrariedades nesses pedidos. Há os que requerem os medicamentos à União, outros aos estados e outros mais ao município, que têm orçamentos separados, mas que respondem solidariamente pelo Sistema Único de Saúde.
ConJur — O Supremo Tribunal Federal pode alinhar essas respostas?
Manoel Gonçalves — O Supremo agora promete definir quais são os limites. Mas é justamente aí que está a mudança. Em outras épocas, essa seria uma questão decidida pelo Legislativo, por meio de uma lei.
ConJur — O que acelera o processo decisório.
Manoel Gonçalves — Esse poder agora se acentuou em um nível muito alto. Há decisões mais recentes que mudam até o sistema político brasileiro. A posição do Tribunal Superior Eleitoral sobre fidelidade partidária, mantida depois pelo Supremo, alterou o sistema político e deu uma força maior ao vínculo entre partido e candidato.
ConJur — O fenômeno é somente fruto do texto constitucional ou também decorre da omissão dos outros Poderes?
Manoel Gonçalves — A Constituição abriu as possibilidades. Inicialmente havia certa timidez do Judiciário, em particular do Supremo, em explorar essas possibilidades. Caso típico é o do Mandado de Injunção, previsto na Constituição como uma ação direta de inconstitucionalidade por omissão. A diferença era que a ação por omissão só podia comunicar a mora ao Legislativo, enquanto que a Constituição não falava sobre os limites do Mandado de Injunção. O arquivo era incompleto. Quando se impetraram os primeiros Mandados de Injunção, o Supremo decidiu que a decisão não podia ir além da inconstitucionalidade por omissão. Isso não levava a nada, porque o simples aviso da mora não obriga o Congresso a tomar nenhuma iniciativa. Agora, porém, o Supremo orienta o Mandado de Injunção, determinando que se faça isso ou aquilo.
ConJur — O que houve foi uma mudança de mentalidade?
Manoel Gonçalves — Os magistrados evoluíram nesse período e passaram a ter uma tentação de influir mais incisivamente nos negócios políticos. Isso se deve várias razões. Uma delas é a omissão do Poder Legislativo. A outra é que há muita gente no Judiciário que quer ter influência na condução dos negócios públicos, em uma espécie de politização. Isso ocorre desde a primeira instância até o Supremo. É claro que, no primeiro grau, o campo se limita a políticas públicas. Os tribunais superiores, porém, têm a faca e o queijo na mão.
ConJur — Por que?
Manoel Gonçalves — Porque eles têm a última palavra, e porque a Constituição acaba sendo aquilo que o Supremo Tribunal Federal diz que é. Esse fenômeno não se coaduna perfeitamente com a democracia, já que o Judiciário não é um Poder escolhido pelo povo, a não ser muito indiretamente. É uma espécie de poder aristocrático, escolhido por meio de concurso, em nome da capacidade. Não segue os princípios democráticos.
ConJur — Isso tira a legitimidade das decisões judiciais que interferem na política?
Manoel Gonçalves — Um Supremo Tribunal Federal estritamente jurídico, sem essas atribuições políticas, pode ser composto do jeito que é hoje, não faz grande diferença. Mas um Judiciário com papel político em uma democracia reclama algumas correções. Consideremos o poder que o presidente da República tem de nomear a maioria absoluta do Supremo, com mandatos vitalícios, pelo menos até eles completarem 70 anos, o que pode significar muito tempo. O presidente ou seu partido podem perder as eleições, mas aqueles ministros não vão sair de lá. Eu sempre brinco que, se fosse presidente da República, nomearia ministros que tivessem 35 anos de idade, porque, pelos 35 anos seguintes, eu teria alguns aliados.
ConJur — A estabilidade dos ministros não garante a jurisprudência e a segurança jurídica?
Manoel Gonçalves — As garantias são necessárias, mas não a vitaliciedade. Os tribunais europeus, por exemplo, são cortes constitucionais, às quais são atribuídas tarefas políticas, como as que a Constituição brasileira atribuiu ao Supremo. Os membros desses tribunais, porém, têm mandato com prazo limitado, não vitalício.
ConJur —Como a forma de escolha dos ministros se relaciona com isso?
Manoel Gonçalves — A forma de escolha dos ministros é outro tema delicado. A solução talvez fosse diminuir a arbitrariedade, a liberdade de o presidente da República indicar os membros do Judiciário. Ele poderia, por exemplo, escolher nomes de uma lista feita com a participação de órgãos como o Ministério Público, e o Poder Judiciário estadual e federal.
ConJur — Mas as indicações não dependem de aprovação do Senado federal?
Manoel Gonçalves — Existe um controle pelo Senado, mas o Senado sempre diz amém. Fica parecendo que o posto é preenchido por razões políticas, que é escolhido quem é amigo. Isso que se critica hoje, já se criticava em outros tempos.
ConJur — A defesa dos direitos fundamentais previstos na Constituição tem tido o mesmo avanço que a ação do Judiciário na política?
Manoel Gonçalves — A Constituição não é uma mera organização do poder, mas uma organização que limita o poder. Isso significa impedir abusos e dar garantias aos jurisdicionados. No aspecto teórico, o sistema jurídico brasileiro fornece os instrumentos para essas garantias, mas, como acontece também em outros campos, a prática não corresponde à teoria, porque nós temos uma deficiência de órgãos que deem conta de todas as questões. A tendência é centrarmos tudo no Supremo Tribunal Federal, mas esquecemos que grande parte dos problemas ligados aos direitos individuais, inclusive os fundamentais, estão caindo na alçada dos juízes de primeira instância, onde há acumulo de serviço e de processos, dos quais o juiz não dá conta. Justiça tardia não é justiça, muita gente tem os direitos frustrados devido à demora. Nós não temos uma máquina judiciária suficientemente grande para cuidar de todas as questões, e isso produz retardamentos e negativas da Justiça.
ConJur — A morosidade na tramitação dos processos é o único problema?
Manoel Gonçalves — Em alguns casos, ainda há outro capítulo, que é o do calote. Desapropriação, por exemplo, é perda do direito de propriedade, que é um dos direitos fundamentais. Muita gente tem um raciocínio absolutamente errado de que desapropriações só atingem ricos, a quem a falta de pagamento do governo não tem maior importância. É verdade que há desapropriações de grandes áreas, de imóveis valiosos, mas o número de pessoas atingidas por obras públicas hoje é imenso, e os casos dessas pessoas acabam na vala comum. Elas têm que lutar para obter um valor razoável na Justiça, o que não significa que irão recebê-lo, porque aí entra o problema dos precatórios.
ConJur — A Justiça cai na mesma ineficiência dos outros poderes, uma vez que suas decisões, como nos casos dos precatórios, não são cumpridas pelo Estado?
Manoel Gonçalves — A Justiça tem meios coercitivos de obrigar o Executivo a cumprir as decisões, já que existe o crime de desobediência. Mas a própria legislação cerceia a impositividade da Justiça. Nas desapropriações, a Justiça fixa o valor e manda que o Estado pague, mas a lei não dá o meio pelo qual a Justiça exija o pagamento. A sanção que a Constituição prevê para o não pagamento é a intervenção federal, mas na prática, a União não vai intervir em um estado por causa disso, já que ela também não paga.
ConJur — Como sair do impasse?
Manoel Gonçalves — Criando meios que obriguem o Estado a pagar em um prazo determinado e curto. Também é preciso mudar a mentalidade do Executivo. Cansei de ouvir de dirigentes políticos paulistas a desculpa: “Não fui eu que desapropriei, porque tenho que pagar?” Eu era secretário da Justiça, no fim de 1962, quando dois problemas explodiram como bombas. Um deles foi o pagamento de uma indenização brutal aos fazendeiros que eram proprietários de terras na região da cidade de Palmital. O estado de São Paulo considerou o local livre e vendeu os terrenos da área que deu origem à cidade. Isso rendeu um processo de mais de cinquenta volumes, que durou 40 anos. Quando saiu a decisão da Justiça pelo pagamento, o procurador-geral do estado me pediu que fizesse os cálculos da indenização nos computadores do Banespa. O valor só foi efetivamente pago vinte anos depois, no governo Franco Montoro [1983-1987].
ConJur — E o outro caso?
Manoel Gonçalves — O outro caso foi a desapropriação da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, feita pelo governador Carvalho Pinto [que governou o estado de 1959 a 1963]. Os acionistas da companhia conseguiram, depois de 20 anos, uma decisão favorável da Justiça, que obrigou o governo a pagar uma indenização altíssima, também quitada por Franco Montoro. É possível que ainda haja dinheiro dessa desapropriação depositado em juízo, porque muita gente já tinha morrido, firmas estavam extintas, e outras pessoas consideraram aquilo perdido.
ConJur — É essa falta de efetividade do Estado que impulsiona alguns juízes a agirem mais como justiceiros do que como julgadores?
Manoel Gonçalves — Isso é uma mentalidade que veio da Itália, onde os chamados “juízes vingadores” fizeram um bom trabalho na repressão à máfia. O problema é que quando eles embalam, às vezes, vão além dos limites, querendo corrigir o mundo, o que não é tarefa deles. Quase a totalidade dos advogados é contra a teatralização da Justiça, em operações como a coordenada pelo delegado Protógenes Queiroz [da Polícia Federal, que comandou a Operação Satiagraha], em que prendeu Celso Pitta de pijama, colocando algemas em quem não oferecia risco nenhum. Isso é um abuso. Mas o povo parece que gosta, porque não está na pele dele. O advogado tem um distanciamento que outros não têm. E a função do juiz não é vingar, é fazer justiça.
ConJur — As medidas do Supremo nesse caso foram adequadas?
Manoel Gonçalves — Na proibição do uso de algemas, talvez ele tenha legislado de modo não muito ajustado. A minha filha, que é juíza de Direito no interior, disse que será complicado ouvir bandidos sem algemas. Ela contou o caso de um acusado que fugiu em Barretos [SP], pulando uma janela, indo parar no teto de uma casa, tudo isso algemado. Na hora de fugir, o prisioneiro faz milagre.
ConJur — Em que o Supremo errou?
Manoel Gonçalves — Ao fixar regras gerais, porque aí estava legislando. Legislar é uma coisa que não deve ser feita ao sabor do momento. No Legislativo, uma lei aprovada em função de um fato recente frequentemente resulta em distorção.
ConJur — No caso do Congresso, essa é uma maneira de dar uma resposta ao eleitor. E no do Judiciário?
Manoel Gonçalves — É ainda mais complicado, porque o juiz não precisa dar satisfação. Se o juiz precisar de dar satisfação à opinião pública, nós não precisaremos mais de juiz.
ConJur — A quantidade de Medidas Provisórias editadas pelo Executivo também mostra a necessidade de legislar?
Manoel Gonçalves — As Medidas Provisórias são desnecessárias e se tornaram um mau hábito. São piores que os decretos-lei, porque os decretos pelo menos tinham matérias limitadas. É claro que os parlamentos, a partir de um determinado momento histórico, ficaram sobrecarregados e se tornaram lentos. Mas há maneiras conhecidas de acelerar o funcionamento dos parlamentos. Um exemplo é o projeto de lei sujeito a prazos determinados para apreciação nas câmaras. O procedimento está na Constituição atual, mas não se ouve falar dele porque é mais cômodo fazer Medida Provisória. Existe outro remédio, que é a lei delegada. Pela lei delegada o Congresso autoriza o presidente da República a legislar, mas com prazo e parâmetros pré-estabelecidos. Nos Estados Unidos, não há medidas provisórias e nem por isso eles deixam de ter medidas legislativas no tempo necessário.
ConJur — O fim da edição de Medidas Provisórias acabaria com a lentidão do Congresso?
Manoel Gonçalves — O problema do Brasil não é lei de menos, é lei de mais. Frequentemente são feitas leis que dizem aquilo que já estava dito. Um historiador disse certa vez que no Brasil só faltava uma lei, a que mandava cumprir as outras.
ConJur — O Legislativo passa por uma crise de função?
Manoel Gonçalves — O Legislativo controla. Nesses últimos anos, ele tem desempenhado uma atividade de controle que merece ser mencionada, que são as CPI’s [Comissões Parlamentares de Inquérito]. A CPI em si não é um meio punitivo de irregularidades, mas coleta informações, abre “caixas pretas” e permite que certos elementos sejam transmitidos ao Ministério Público.
ConJur — Parte dos problemas dos Poderes não são inerentes ao próprio regime democrático?
Manoel Gonçalves — Aí se encaixa uma tese que não é simpática, de que a democracia tem que ser dosada segundo os fatores políticos, econômicos e sociais de cada povo. Isso parece reacionário, mas a raiz disso está em Lassalle, que era socialista [Ferdinand Lassalle, constitucionalista alemão, precursor da social-democracia na Alemanha]. Ele dizia que a Constituição era o reflexo da realidade. Se nós estabelecermos um regime que não tenha nenhuma relação com o nível de desenvolvimento político, econômico e social do povo não vai funcionar.