No país do BBB, Judiciário é instrumento de paz social
“Vivemos no país do BBB!..." A exclamação, em tom de lamento, é do advogado, professor, escritor e ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior. "A sociedade está absolutamente desorientada pela grande prevalência dos veículos de comunicação e pelo enfraquecimento dos meios de controle sociais informais.” Para ele, o brasileiro trocou o “sucesso do ideal” para buscar o “ideal do sucesso”.
É nesse contexto que florescem mentalidades como a que ele chama de "ilusão do Direito Penal". "Em anos de eleições, os políticos sempre apresentam projetos absurdos em matéria penal só para poderem dizer no horário eleitoral: ''Eu ajudei a aprovar a Lei de Crimes Hediondos''", exemplifica. Foi assim que surgiram leis como a dos Crimes Hediondos e a Lei Maria da Penha. Outros projetos só não foram à frente por excesso de absurdo: "Já tentaram fazer a Lei de Sequestro de Ônibus e a Lei dos Pais que Atiram os Filhos pela Janela".
Razão para otimismo, só a atuação do Supremo Tribunal Federal, que tem tido sabedoria para preencher os vazios que se abrem na política e na sociedade. "O STF tem assumido um papel quase de ordenador, especialmente da estrutura política". Para isso, a corte tem se valido de institutos como o Mandado de Injunção para suprir omissões do Poder Legislativo.
Quanto ao Judiciário em geral, Reale Júnior lembra que ele é um instrumento de paz e harmonia social. "Onde há juiz existe paz, desde que ele saiba que o seu papel é de conciliação. Ele é autoridade absolutamente respeitável, capaz de impor-se e estabelecer o termo de convivência", diz. A realidade, é verdade, nem sempre corresponde a esse ideal de harmonia. Miguel Reale Júnior lamenta os casos de corrupção nos quais o Judiciário é acusado, e não se conforma com o desvirtuamento de experiências originalmente alvissareiras, como os Juizados Especiais.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o também escritor Miguel Reale Jr. revela detalhes sobre o seu terceiro romance O Juramento, livro que aborda o conflito geracional entre pais e filhos no interior de Minas Gerais no fim da década de 1940. Presidente do Conselho do Instituto Pro Bono, Reale fala também da importância da advocacia voluntária para a sociedade. “A advocacia pro bono é um ônus que o profissional tem, um dever social, que só honra a advocacia”. Na entrevista, o jurista defende uma reforma no Código Penal e fala do legado deixado por seu pai, o jurista Miguel Reale, para o Direito brasileiro.
Participaram da entrevista os jornalistas Aline Pinheiro e Mauricio Cardoso.
Leia a entrevista:
ConJur — O que o leitor pode esperar do seu mais novo livro, o romance O Juramento?
Miguel Reale Jr. — Este é o meu terceiro romance, mas não policial, como os anteriores. O Juramento também se situa no passado mais distante, em 1948, na cidade mineira de Pouso Alegre. Entre os principais dados de realidade histórica que a obra traz está a de que Pouso Alegre foi o único lugar no Brasil a ter um campo de prisioneiros de guerra. Eram prisioneiros alemães que tinham sido detidos depois de aportar em águas brasileiras. O romance relata um confronto de valores entre a geração do século XIX e meados do século XX, e seus filhos. Uma família tradicional mineira, Paiva Lisboa, enfrenta novas formas de vida. O livro demonstra que mesmo numa sociedade tradicional e com padrões religiosos, não há um segredo na transmissão de valores e de comportamento para os filhos. A família vive então uma grande decepção com seus herdeiros. Há um confronto de valores porque há um filho homossexual, outro viciado em drogas e outro comunista. Marca o surgimento de uma nova mentalidade, novas manifestações de liberdade que vão de encontro aos valores tradicionais da aristocracia rural.
ConJur — Pode-se fazer alguma relação aos tempos de hoje?
Miguel Reale Jr. — É um pouco difícil, já que vivemos hoje em uma sociedade em radical mudança. Na década de 50, a sociedade ainda estava se instalando. Houve uma transformação fundamental, houve mudanças, uma grande evolução. Essa transformação começa nos anos 50, no pós-guerra, e alcança o seu ápice na geração dos anos 60, especialmente em 1968, que é a grande transformação da libertação sexual, da afirmação da mulher, do processo mais galopante da industrialização, da urbanização. E hoje mudou muito. Vivemos uma mudança mais grave, que é a desordenação da sociedade. Ela está absolutamente desorientada pela grande prevalência dos veículos de comunicação e pelo efetivo enfraquecimento dos meios de controle social informais.
ConJur — Como o senhor define a sociedade hoje?
Miguel Reale Jr. — Nós vivemos em uma sociedade de receio, de paúra, de incomunicabilidade, de antissocialidade. As pessoas não participam mais dos problemas dos outros, não se cumprimentam nos elevadores, são indiferentes, têm medo. Essa tão propalada sociedade do risco vive um imenso individualismo, momento em que se passou do “sucesso do ideal para o ideal do sucesso”. As pessoas não têm mais o ideal, só buscam o sucesso. Os referenciais que nós temos hoje são as celebridades criadas pelos meios de comunicação. Nós estamos no país BBB, do presidente da República BBB. Só presidente BBB lança camisinha do palanque carnavalesco. Uma sociedade imensa que, a partir dos anos 50, passou a questionar os controles sociais — a família, a igreja, a escola, o sindicato, o clube, a própria sociedade como um todo — que antes eram inquestionáveis. Estes instrumentos de controle foram contestados ao longo do tempo como no “É Proibido Proibir”, que aborda a liberdade sexual e a afirmação feminina. Mas hoje não existe absolutamente referencial valorativo. A crise de hoje é muito mais profunda porque não existem referenciais. Não há desenvolvimento da personalidade como havia na geração de 68. O jovem afirmava o seu modo de ser e isso significava autonomia. Hoje perdeu-se a capacidade de autonomia.
ConJur — De que maneira a sociedade de hoje influencia o Judiciário?
Miguel Reale Jr. — O Judiciário está dentro da sociedade. O Judiciário hoje, infelizmente, está muito envolvido moralmente com a corrupção. Isso conforme dados passados pelo próprio corregedor-geral do Conselho Nacional de Justiça. Corrupção no Espírito Santo, no Maranhão, no Piauí, na Bahia, no próprio Superior Tribunal de Justiça, e com níveis preocupantes nas justiças estaduais. Numa sociedade de medo, em que esses controles sociais não mais funcionam, as pessoas se perguntam: “Como é que eu vou ter segurança”? E a segurança cai na vala comum do Direito Penal. Como existe um vício brasileiro de imaginar que a realidade se revolve pela lei, passamos a ter uma criação vertiginosa de leis penais que têm valor meramente simbólico. Como se os brasileiros pudessem dizer: “Ah, já que existe uma lei penal, eu vou dormir tranquilo”, o que é uma mentira.
ConJur — De que forma podemos observar essa desorganização da sociedade brasileira?
Miguel Reale Jr. — A sociedade é politicamente desorganizada. Não existe um centro de poder que imponha respeito. O próprio presidente faz do comportamento educacional baixo um modo de se fazer popular. Ele não transmite comportamentos. O Senado não transmite comportamentos, a Câmara dos Deputados não transmite comportamentos. Passa a ter um papel fundamental o Supremo Tribunal Federal, que fica preenchendo vazios.
ConJur — Qual é o papel do STF nesse vazio da sociedade?
Miguel Reale Jr. — Ao contrário do que se estabeleceu durante muitos anos, o STF tem assumido um papel quase de ordenador, especialmente da estrutura política. Eu fiz um dos primeiros Mandados de Segurança de Inconstitucionalidade por Omissão. A Constituição estabelecia em 70 o número máximo de deputados por estado, dependendo de Lei Complementar. São Paulo era o único que poderia ter 70 deputados. Entrei com Mandado de Injunção para que o Supremo legislasse na ausência da atividade legislativa para conceder as cadeiras para São Paulo. Perdi por seis a cinco, mas o Supremo recomendou ao Congresso que legislasse. O Congresso não legislou e entrei com uma Reclamação quanto à ordem judicial. O Supremo também não legislou, mas fez uma outra reprimenda, que levou o Congresso a criar a Lei Complementar que deu 70 lugares de representação para São Paulo na Câmara. O Supremo tinha muito cuidado e dizia “não vou legislar, não vou interferir em outro campo”, numa medida que era claramente uma omissão do Congresso. Agora vêm o Tribunal Superior Eleitoral e o Supremo e legislam em matéria constitucional, como por exemplo, na questão da fidelidade partidária, que impõe a perda do mandato, como está previsto na Constituição. São matérias da reforma política que o Legislativo não faz e que o Supremo achou que deveria fazer.
ConJur — O Supremo não está indo além de suas atribuições?
Miguel Reale Jr. — O STF está indo além de suas funções porque criou-se um vazio. Ele não iria além se houvesse uma atuação responsável do Congresso Nacional, que não produz nada de relevante. O Congresso produz medidas provisórias e algumas leis penais, sempre dentro daquela mentalidade da ilusão penal. Quando fui ministro da Justiça, meu grande trabalho em ano eleitoral era impedir que se votassem projetos de leis penais, tamanho eram os absurdos das propostas. Não há ano eleitoral que resista ao aparecimento de normas penais de grande apelo para que depois os deputados, gloriosamente, possam dizer no horário eleitoral “olha, eu participei da elaboração da lei que puniu tal coisa”. É uma ilusão imaginar que leis mais rigorosas vão reduzir a criminalidade.
ConJur — O Direito Penal pode ser considerado instrumento de segurança pública?
Miguel Reale Jr. — Tanto o governo federal como o Congresso são indiferentes a qualquer política criminal de cunho social. Isso estava num diagnóstico do sistema criminal de uma comissão que eu presidi em 2000, com várias propostas de política criminal, que não foram postas em prática. Porque reina sempre a lei do mínimo esforço. “Ah, existe um problema? Então vamos criar a lei penal”. Em 2002 foi criada no Congresso uma Comissão Mista de Segurança Pública, de onde saíram os maiores absurdos. Um deles nasceu com o sequestro do ônibus 174, fato que rendeu um filme que quase foi indicado ao Oscar. Na época, a Câmara dos Deputados ganhou o Oscar da imbecibilidade. Foi criado um projeto de lei, do qual eu consegui segurar a votação, que tipificava o “sequestro de ônibus” com pena mínima de 20 anos. Recentemente, criaram a figura de matar o filho jogando pela janela, por causa do caso Nardoni.
ConJur — O Congresso acaba de aprovar a lei do sequestro-relâmpago. Há necessidade de aprovar leis para tipificar crimes tidos como novos?
Miguel Reale Jr. — Eu fiz parte da comissão que criou a figura do sequestro-relâmpago. Pode-se até criticar a descrição, mas já existe e tem pena elevada.
ConJur — A pena, agora, pode chegar a 30 anos.
Miguel Reale Jr. — Trinta? Isso é jogar para a platéia.
ConJur — A Lei dos Crimes Hediondos foi oportuna?
Miguel Reale Jr. — A Lei dos Crimes Hediondos foi o maior blefe que já houve neste país. As fontes legislativas no Brasil são: a lei, a doutrina, a jurisprudência e a televisão. Em 1990, às vésperas do processo eleitoral, foi sequestrado Roberto Medina, jornalista de conhecida rede televisiva. Em função do sequestro, cria-se a Lei dos Crimes Hediondos e se estabelece o rigor na execução da pena. O que aconteceu depois de 1990? Multiplicou-se por dez o número de sequestros no Rio [de Janeiro]. Então não é a lei penal. Essa lei é inconstitucional porque impede o cumprimento individualizado da pena e a progressão de regime. Mas o Supremo, na época, entendeu que não era inconstitucional. Então foi criada uma comissão e nós propusemos uma outra legislação chamada Crimes de Especial Gravidade em que se estabelecia a progressão — mais rigorosa do que está no Código Penal, que é tênue demais.
ConJur — Como esse projeto foi avaliado pelo Legislativo?
Miguel Reale Jr. — O texto iria para votação na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. O Antônio Carlos Magalhães, que presidia a CCJ [Comissão de Constituição e Justiça], viu naquilo benefícios aos outros criminosos do país. O caso foi parar no Jornal Nacional e houve um "estrondo" no país. A tal ponto que, erradamente, o governo se acovardou e retirou o projeto. Muda a composição do Supremo e, por maioria, os ministros dizem que a Lei dos Crimes Hediondos é inconstitucional e determinam que não poderia haver a proibição de passagem de um sistema rigoroso para outro menos rigoroso e também proibiram o cumprimento da pena integral em sistema fechado. Nessa hora, todos os juízes que decidiram em contrário passaram a decidir em função de um voto de uma decisão em Habeas Corpus e não por Arguição de Inconstitucionalidade. Se é inconstitucional a norma da Lei dos Crimes Hediondos, vai se aplicar o quê? Código Penal comum, que é muito tênue. Aí vem o Congresso e aprova o projeto que nós tínhamos feito. É piada ou não é? Posso acreditar nesse país? Posso levar a sério esse Congresso?
ConJur — A Lei Maria da Penha também produziu efeitos contrários aos que se propunha?
Miguel Reale Jr. — Acaba de sair um estudo de uma juíza do Rio Grande do Sul — eu já tinha escrito isso — concluindo que a Lei Maria da Penha acabou tendo um efeito perverso. Copiaram a normativa de uma lei espanhola e não perceberam qual seria o efeito. Qual foi o efeito dessa lei? Ela reduziu o número de denúncias e de fatos. As mulheres deixaram de denunciar seus maridos ou companheiros porque sabem que a denúncia é irreversível e é difícil de retornar. Elas não querem pôr o marido na cadeia, só querem que cesse a agressão. Então reduziu o número de comunicações e isto também por causa da má aplicação da lei pelos juizados especiais criminais. Virou piada.
ConJur — O Código Penal precisaria de uma reforma?
Miguel Reale Jr. — Sim. Até tenho um projeto de lei que precisa de uma comissão para reordenar a parte geral de 1984. Esse projeto está parado na Câmara há um bom tempo. A parte geral foi alterada no sistema de penas pela Lei 9.914. Foi uma coisa horrorosa. Essa lei cria etnomias absurdas que envergonham a legislação brasileira no plano internacional. A parte especial já é mais complicada. Precisa fazer uma consolidação das leis penais porque não existe lei no país que não tenha uma disposição penal. Nenhum deputado fica satisfeito de elaborar uma lei que não traga uma previsão de crime. Tudo vira crime. Então passa a haver crimes de comportamento. Meras desobediências administrativas ou a regulamentos são criminalizadas.
ConJur — Há um excesso de leis penais?
Miguel Reale Jr. — O trabalho mais difícil é o de consolidação da legislação penal extravagante brasileira. Tem lei penal para todo o lado, com penas absolutamente desproporcionais. Exemplo clássico ocorreu no ano eleitoral de 1998, quando surgiu o caso dos “bebês Shering”, cujas mães tomaram pílula de farinha no lugar de anticoncepcional. Grandes matérias nos jornais televisivos falavam sobre falsificação de remédios. O que fazem? Uma nova lei dos remédios. Mudam o Código Penal e estabelecem pena de 10 a 15 anos para adulteração de remédio. Crime hediondo. Tinha que ser, afinal de contas estávamos às vésperas da eleição.
ConJur — A lei abrange cosméticos também, não é?
Miguel Reale Jr. — Vender um shampoo com fórmula diferente daquela escrita na Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária] virou crime hediondo com pena de 10 a 15 anos. O shampoo pode ser melhor, mas como a fórmula não é a inscrita na Anvisa, é crime hediondo. Lembro-me de tantos deputados que compareciam com suas manifestas inteligências no horário eleitoral dizendo: “Eu participei da elaboração da lei que transforma falsificação de remédio em crime hediondo”.
ConJur — Isso acontece também no caso da lei ambiental?.
Miguel Reale Jr. — A lei ambiental é um desastre. É a legislação mais envergonhante do Direito brasileiro. Eu a chamei de a “lei hedionda dos crimes ambientais”. É uma coisa ridícula que transforma vários crimes de comportamento em crime de desobediência. Quer dizer: deixar de respeitar um regulamento no uso de agrotóxicos é crime. Dano culposo indireto. Maltrato a plantas ornamentais tem a forma culposa. Se você escorrega e amassa a begônia do jardim do vizinho é crime.
Conjur — Um membro do Conselho Nacional de Justiça diz que as leis são produzidas, caem no limbo e só se efetivam depois que passam pelo crivo do Judiciário. O senhor concorda?
Miguel Reale Jr. — A lei é eficiente quando não é desrespeitada. Nesse caso, nem precisa ser apreciada pelo Judiciário. Evidentemente que toda lei está sujeita à interpretação. A vontade do legislador é desfeita porque a lei ganha vida própria, a lei tem a sua autonomia. O Direito é o que a interpretação for, isso é um princípio internacional. E a interpretação não está apenas na letra. Ela se faz na relação entre a lei e o fato concreto em exame. É o Judiciário que em parte vai examinar a contribuição da doutrina na aplicação ao fato concreto. E como a realidade é muito mais rica do que a lei, a realidade traz novidades sempre que a aplicação vai além daquilo que a norma diz.
ConJur — Qual a sua avaliação da atuação dos juizados especiais?
Miguel Reale Jr. — Ainda continua a haver no Brasil as audiências coletivas de juizados especiais. São 400 pessos chamadas na mesma audiência que parece um verdadeiro mercado. O juiz vai lá e faz uma conversa assim.“Olha, vocês são boas pessoas, vocês foram honestos sempre. Cometeram um pequeno erro, a Justiça vai compreender. Nós vamos perdoar. Quem concorda em pagar uma cesta básica?" O incrível é que o acordo ocorre mesmo que haja erro na autoria do crime ou em casos em que não há crime. E o juiz diz “isso é pra depois, isso não interessa”. Muitos advogados também concordando porque eles ganham para acompanhar o cliente na audiência. E os juízes querem resolver o acúmulo de processos.
ConJur — É possível conciliar e fazer justiça com celeridade?
Miguel Reale Jr. — É possível conciliar desde que exista mentalidade para tanto. Existem juízes que sabem que estão lá para compor, promotores que sabem que tem que se fazer uma seleção. Mas via de regra, o que há é uma burocratização da Justiça, uma ausência de dedicação. É massa de trabalho: números que eu tenho que resolver, gavetas e estantes que eu tenho que esvaziar. A que preço, não importa. O problema não é processual, é social. E não encaram que por trás do processo existe gente, existe um drama, existe um conflito. Esta é uma visão positivista, processualista, que herdamos dos nossos fundadores portugueses.
ConJur — Mas o papel de resolver os problemas não é do Judiciário?
Miguel Reale Jr.— É, na medida em que o Judiciário é o grande instrumento de paz social, de harmonia social. Organizei no Ministério da Justiça os “plantões sociais” nas delegacias de polícia, com psicólogos e assistentes sociais. O Judiciário tem que ser auxiliado por estes profissionais, este é seu papel. Onde há juiz, existe paz desde que ele saiba que o seu papel é de conciliação. Ele é a autoridade absolutamente respeitável que é capaz de impor-se e estabelecer o termo de convivência.
ConJur — Qual seria o prazo razoável de tramitação de um processo?
Miguel Reale Jr. — Não existe o prazo razoável do processo. O processo exige uma complexidade de provas, de elementos de análise de busca de documentos, de análises periciais. Então tem vários problemas sérios de perícia que muitas vezes demandam tempo. O que não é razoável é que o processo fique quatro anos para ser distribuído no Tribunal de Justiça. Porque ali não está sendo feito prova. Ele está parado.
ConJur — Como é que o senhor avalia o trabalho do CNJ?
Miguel Reale Jr. — O Conselho Nacional de Justiça, contra o qual a magistratura se colocou tão ardorosamente tem um papel fundamental. Durante a Constituinte acreditva-se que um órgão de controle traria a destruição do Judiciário. Hoje a própria AMB [Associação dos Magistrados Brasileiros] reconhece que precisa de um órgão de controle. Porque a corrupção contaminou grande parte do Judiciário brasileiro. O nepotismo é um exemplo muito claro. Já está previsto na Constituição quando ela diz que tem que haver o respeito ao princípio da impessoalidade. Depois veio a Lei dos Servidores Judiciários e Federais de 1996 [Lei 11.416/06], que proibiu o nepotismo. E não era cumprida. Agora tem a Portaria 4 do CNJ que proibiu essa prática.
ConJur — O economista Albert Fishlow diz que a estabilidade econômica e política do Brasil foi mais obra do Judiciário do que do Executivo e do Legislativo. O senhor concorda?
Miguel Reale Jr. — O Judiciário, depois da Constituição de 1988, sofreu uma imensa demanda. Havia uma litigiosidade contida. Mas, ao mesmo tempo, tem um dado assustador: o Judiciário brasileiro é dos Judiciários do mundo que tem o maior número de processos, mas é o que tem o menor número de partes. As partes são as grandes corporações, as grandes empresas, ou o Estado, seja a União, os estados e os municípios, que açambarcam 80% do Judiciário. Então, a maior parte da população não tem acesso ao Judiciário.
ConJur — Mas o juizado especial foi criado com a ideia de ampliar o acesso à Justiça.
Miguel Reale Jr. — Foi criado com essa ideia e funciona. O juízo cível especialmente tem funcionado bem. Alguns da Justiça criminal até funcionam, mas a maioria tem se transformado numa “fábrica de soluções rápidas legais”. Mas, agora, não sei por quê, o Judiciário virou fonte de segurança jurídica. As decisões dos tribunais dão segurança jurídica ao investidor e os agentes econômicos querem essa segurança. Mas, ao mesmo tempo, essa segurança jurídica é sempre uma reclamação dos empresários. Primeiro porque há uma demora no processo judicial imensa. Depois porque existe a criação legislativa. O Judiciário não consegue suprir tudo isso.
ConJur — As mudanças da composição, principalmente no Supremo, prejudicam a segurança jurídica?
Miguel Reale Jr. — Não, acho até que ela areja. Sou até defensor de um mandato de nove anos para ministro do Supremo Tribunal Federal. Exatamente para arejar, para mudar, é fundamental. E tem mudado, às vezes, para muito melhor.
ConJur — O senhor é presidente do conselho do Instituto Pro Bono. Qual a importância da advocacia voluntária no país?
Miguel Reale Jr. — A advocacia Pro Bono enfrentou uma série de reações dos que achavam que seria uma forma de captar clientela. O Instituto Pro Bono dedica-se a fazer advocacia gratuita com vários escritórios. Temos mais de 300 escritórios que estão inscritos para a produção de trabalhos jurídicos consultivos ou contenciosos. O trabalho é prestado a entidades assistenciais sem fins lucrativos que têm problemas tributários, trabalhistas ou comerciais.
ConJur — Como o senhor avalia a posição da Ordem dos Advogados do Brasil em relação à advocacia voluntária?
Miguel Reale Júnior — Existe um projeto sobre advocacia voluntária que está em tramitação no Conselho Federal da OAB. Existem várias decisões, regulamentos de OABs estaduais aprovando a advocacia voluntária. Existe também o receio de que haja perda do mercado de trabalho porque muitos advogados sobrevivem graças ao convênio de Assistência Judiciária com o estado. Houve um grande crescimento de faculdades de Direito e, mesmo com Exame de Ordem, acabou havendo uma proletarização da profissão. Mas isso não proíbe que exista advocacia pro bono porque é um ônus que o profissional tem, um dever social, que só honra a advocacia.
ConJur — Qual foi o legado de seu pai, o jurista Miguel Reale, para o Direito Brasileiro? Quais foram suas principais contribuições?
Miguel Reale Jr. — O legado principal foi, sem dúvida nenhuma, o novo Código Civil, que recebeu muitas críticas, mas depois se percebeu o quanto é inovador e criativo. A busca de flexibilidade para adaptação a situações novas, por meio de cláusulas abertas, demonstra como ele é moderno. Outra grande contribuição foi no ensino do Direito. O livro dele sobre anulamento e revogação do ato administrativo, é um clássico. Lições Preliminares do Direito e A Filosofia do Direito, por exemplo, continuam a ser livros básicos adotados por inúmeras faculdades. Outra contribuição importante foi a criação do Instituto Brasileiro de Filosofia e a edição da Revista Brasileira de Filosofia, que já consta com mais de 200 números. São 54 anos ininterruptos da publicação.
ConJur — Como era o pensamento dele sobre o Direito?
Miguel Reale Jr. — Ele foi um dos últimos jurisconsultos do Brasil, um filósofo do Direito. Foi um administrativista, constitucionalista e civilista, inclusive no Direito Privado. Ele tinha uma ampla gama de conhecimentos em diversas áreas. Atuava tanto no campo público como no privado, o que é extremamente raro numa época de especializações. Ele tinha também uma visão culturalista muito importante. A ideia de cultura como uma priori, ou seja, o homem é natureza, mas é, antes de tudo, História. Estou criando um Instituto de Estudos Culturalistas em homenagem ao pensamento dele.
ConJur — Miguel Reale é renomado pela compreensão tridimensional do Direito. Qual sua opinião sobre essa visão?
Miguel Reale Jr. — É uma visão integrada, concreta e realista, que revela a nomogênese jurídica, ou seja, o processo da formação do Direito. E esse processo de formação por meio da Teoria Tridimensional é completada pela visão das fontes e modelos legais, consuetudinários, negociais, judiciais para chegar a uma outra contribuição importante no campo da teoria da interpretação. Ela revela especialmente a ideia de que o Direito é o que a interpretação for e que este está condicionado pela cultura e pela História. Não se pode ter uma visão exclusiva da teoria tridimensional sem a compreensão da construção dos modelos e de fontes de modelos. No livro Fontes e Modelos, ele amplia e mostra que o Direito vem de diversos focos de poder, que estão sempre condicionados por circunstâncias concretas e históri" cas.