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O Brasil está à beira do calote público

Por Flavio J. S. Brando

O Brasil tem sido vendido para efeitos internos e externos como uma das poucas alternativas saudáveis para investimentos, após a crise das hipotecas americanas (o chamado subprime), que abalou as estruturas do mundo.

“Contas em ordem”, “superávits”, “Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)” seriam motivo de orgulho e estabilidade, ficando nosso país como um raro porto seguro para as economias e reservas dos investidores. Com a notável exceção do sistema bancário, que usufruiu com eficiência de juros altíssimos e baixo risco, por décadas, os demais itens de excelência simplesmente não correspondem à realidade.

A imprensa tem publicado (Folha de São Paulo, 27.4.09), p.ex., que “ao menos 21 estados adotam interpretações que aliviam, no papel, o peso dos gastos com pessoal.” As táticas para se manter dentro do limite de despesas previsto pela LRF vão da exclusão de despesas com aposentados à supressão do Imposto de Renda pago pelo servidor do cálculo da folha de pagamento, declaração de ‘receita cheia’, sem concessão de benefícios, transferência do que ‘sobra’ de um Poder para outro, utilização de royalties para pagar pensões, mas sem contabilizar o gasto na despesa, transferência de gastos de aposentados e pensionistas de um Poder para outro, e por aí vai.

Como se isto não bastasse, as dívidas judiciais públicas (os chamados precatórios) simplesmente não são contabilizados devidamente, e seu estoque hoje é estimado em mais de R$ 100 bilhões (um “Madoff”, basicamente o mesmo valor do recente calote em Nova York). O volume de dívida judicial em gestação no Poder Judiciário, apenas para a União, é de R$ 175 bilhões, sem provisões ou reservas conhecidas.
Do lado credor das dívidas públicas, a chamada dívida ativa (impostos em atraso) é contabilizada como 100% boa e cobrável, quando é notório que não se recupera nem 2% ao ano.

Este enorme esqueleto no armário das contas públicas (os precatórios) é o segredo mais escondido neste esforço de maquiagem de contas públicas, para se atingir um irreal equilíbrio entre receitas e despesas.
Aos poucos este mito do equilíbrio fiscal está sendo corroído e conhecido, estados e municípios realmente precisam de um alívio em suas contas, e, de uma forma desesperada e amadorística, escolheram como alvo inicial de solução o calote definitivo nas contas judiciais, via a PEC (Projeto de Emenda Constitucional) 12 (agora 351 na Câmara dos Deputados).

Esta PEC do Calote, como é universalmente conhecida, tem dois eixos básicos.
O primeiro deles é a limitação dentro do orçamento (receitas líquidas) para cumprimento de ordens judiciais, de 0,6 até 2%, para dívidas passadas e futuras.
Seria algo como aprovar uma lei limitando nesses percentuais as execuções por dívidas das pessoas físicas. Assim, quem tivesse um salário de R$ 5 mil, somente pagaria R$ 100 por mês (R$ 5 mil x 2%) por todas e quaisquer dívidas (aluguel, condomínio, cartão de crédito, prestações, etc.), abrindo-se a porta para o calote generalizado, e a consequente falência do sistema de crédito no mercado.
Imaginem o que um prefeito ou governador mal intencionado fará neste cenário: desapropriar a casa, fazenda, rádio, jornal ou TV de seu adversário político, concessionários públicos, bancos privatizados e até a Vale, não dar aumentos aos funcionários, calotear fornecedores, tudo sem problema, blindados pelo confortável limite de 0,6 a 2% para pagamentos.

Qual grande empresário irá investir numa obra de bilhões do PAC, sabendo que, em qualquer disputa contratual, levará anos na Justiça, e, se ganhar, receberá sabe lá Deus quando. Quem comprará títulos voluntários de dívidas públicas brasileiras?
Somente para pagamento do saldo já atrasado de precatórios, o estado de São Paulo levaria ao menos 15 anos, estado do RJ 25 anos, município de São Paulo 26 anos, estado de Goiás 90 anos, Espírito Santo mais de 100 anos.

Indo mais longe, e não permitindo que os precatórios sejam utilizados para qualquer finalidade óbvia (pagamento de impostos atrasados ou não, contribuição para aposentadoria, financiamento da casa própria, empréstimos consignados, capitalização em fundos de investimento em infra-estrutura), estados e municípios (e agora também a União, que hoje paga em dia, mas se beneficiará da PEC, se aprovada) querem instituir um “leilão” viciado, onde só existe um comprador (o próprio devedor) que evidentemente pagará o quanto quiser, da maneira que quiser. Isto se chama confisco, além de trampolim para corrupção. Fica revogada a lei de oferta e procura!

A PEC 12 também cheira muito um Plano Collor, pois imagina, numa canetada, alterar critérios de correção e juros de sentenças judiciais há muito transitadas em julgado.

Muito bem (ou mal), esta PEC 12 foi aprovada por unanimidade no Senado, em cenário de festa, lembrando a orquestra do Titanic tocando um de seus últimos sucessos.

Agora está na Câmara, que receberá a indignação cívica da OAB e inúmeras entidades da sociedade civil engajadas numa luta sem tréguas para acabar com esta violência contra a Constituição, a Democracia, direitos humanos e os bons costumes.

Um grande evento está sendo programado para Brasília no dia 6 de maio de 2009, e nos dias 13 e 14 de maio, palestras serão feitas em Nova York para advogados e juízes internacionais, investidores, avaliadores de riscos e associações de direitos humanos (perto de 100 mil credores somente do estado de São Paulo já morreram sem receber seus legítimos créditos judiciais).

Quem irá investir, quem desejará viver num país onde não existe estabilidade jurídica e o Poder Público somente precisará ser honesto e cumprir contratos, decisões judiciais, até um certo limite, seja ele qual for? Mobutu, no Zaire, Chaves, Morales, Correa aqui na América Latina ainda não tiveram coragem de fazer nada tão patológico.

Repetindo o que já foi dito acima: soluções existem, e são muitas - a União pode substituir os precatórios por papéis de dívida diretos dela União ou garantir papéis de estados e municípios, emitidos a prazo mais curto ou longo, conforme as características de credores (alimentar ou não, idade avançada, maior ou menor valor) e devedores; utilizar esses papéis para pagamento de impostos vencidos ou não, contribuição para aposentadoria, financiamento da compra da casa própria, reservas técnicas de seguradoras, fundos de pensão, capitalização em fundos de investimento em infra-estrutura ou compra de novas ações de empresas abertas (que destinariam os recursos exclusivamente para investimentos).

Agredir o Poder Judiciário como alvo preferencial da solução dos problemas de estados e municípios é lançar uma cortina de fumaça efêmera e inútil. Preservar o calote permanente como ferramenta de gestão de finanças públicas é criminoso, inaceitável num mundo que luta pela transparência, governança e soluções estáveis de longo prazo.

O Tesouro Nacional tem profissionais eficientes e de visão, que precisam sair da zona de conforto burocrático atual e trabalhar com os demais segmentos da sociedade na solução definitiva do problema. A União não pode mais fazer de conta que o problema não é dela, pois o risco soberano Brasil está em jogo. O default público brasileiro é um perigo claro, real e iminente.