OAB critica parecer da AGU na ação sobre tortura durante regime militar
Brasília, 06/02/2009 - O presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, criticou hoje (06) o parecer enviado pela Advocacia Geral da União (AGU) ao Supremo Tribunal Federal (STF) na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 153, ajuizada pela OAB Nacional para que os crimes de tortura praticados na ditadura militar sejam declarados imprescritíveis. Segundo Britto, salta aos olhos a enorme divergência que existe no seio do próprio governo com relação ao tema.
No documento enviado ao Supremo, a Advocacia Geral juntou pareceres do ministro da Justiça, Tarso Genro, da Casa Civil, Dilma Rousseff, e dos Direitos Humanos com opiniões totalmente divergentes entre si, alguns deles afirmando, inclusive, que tortura não é crime político. "Nós entramos com a ação com a certeza do nosso pensamento. Já a União mostra a sua dúvida quando junta pareceres divergentes entre si, de órgãos do próprio governo".
Britto afirmou que tinha esperança de que o governo brasileiro daria a esse tema a visão internacional que o mundo tem dado, de que a tortura é crime gravíssimo, e, sendo crime contra a humanidade, não é político. "Achávamos que o governo brasileiro, pela sua história, pela sua visão social, também assim o iria enquadrar", afirmou Britto, lamentando o teor do parecer enviado pela AGU ao Supremo.
A ação da OAB aguarda votação pelo mais importante tribunal do país, decisão que, segundo o presidente da entidade, trará a definição processual para o tratamento que deve ser dado a quem cometeu crimes de tortura no passado. "Tenho a impressão de que o Supremo Tribunal Federal, pelas decisões que tem proferido, pela demonstração da preocupação com a humanidade, por ter compreendido que a Constituição é cidadã, não é estatal, por compreender que a Constituição não beneficia a tortura, vai ser favorável à ação da OAB".
A seguir a íntegra da entrevista concedida pelo presidente nacional da OAB, Cezar Britto:
P - Como a OAB recebeu o parecer elaborado pela AGU na ação ajuizada pela OAB junto ao STF para punir crimes de tortura cometidos no período da ditadura militar?
R - Nós tínhamos a esperança de que o governo brasileiro ia dar a esse tema a visão internacional que o mundo tem dado. Tortura é crime gravíssimo, é crime contra a humanidade e se é crime contra a humanidade não é político. É assim que tem se tratado esse tema em todos os lugares. Achávamos que o governo brasileiro, pela sua história, pela sua visão social, também assim o iria enquadrar. Nós lamentamos a compreensão da AGU. Entendemos que essa é uma posição majoritária hoje, até porque é oficial, é a posição do governo brasileiro, da AGU, que fala pela União. No entanto, a própria AGU reconhece a fragilidade do seu argumento quando junta pareceres do ministro da Justiça, do ministro da Casa Civil e do dos Direitos Humanos com direções diferentes entre si, alguns deles apontando, como nós, que tortura não é crime político.
P - No mundo do Direito, o que vale: o parecer da AGU ou o entendimento que o governo tem, uma visão divergente, dentro dele mesmo, a respeito do tema?
R - O que vai valer é a decisão final do Supremo Tribunal Federal. O julgamento da ação traz argumentos, a defesa traz outros. O Judiciário pode entender uma parte, entender outro, trazer argumentos novos. Nós entramos com a ação com a certeza do nosso pensamento. Já a União mostra a sua dúvida quando junta pareceres divergentes entre si, de órgãos do próprio governo. Eu acho que essa divergência vai auxiliar no julgamento, vai mostrar ao STF que esse (da AGU) não é um ponto de vista unânime, embora, repito, majoritário e oficial. Tenho a impressão de que o Supremo Tribunal Federal, pelas decisões que tem proferido, pela demonstração da preocupação com a humanidade, por ter compreendido que a Constituição é cidadã, não é estatal, por compreender que a Constituição não beneficia a tortura, vai ser favorável à ação da OAB.
P - Em 79, o conselheiro Sepúlveda Pertence disse que, na avaliação dele, a anistia era ampla, geral e irrestrita. E a Advocacia da União se apóia nesse entendimento para reforçar a tese dela. A OAB mudou de posição?
R - Não. A OAB corretamente, à época, nós estamos falando de 1979, se engajava para que tivéssemos uma anistia ampla, geral e irrestrita, para todo mundo. Mas não foi isso o que foi aprovado. Em 79 foi aprovada uma anistia restrita e não ampla. Anistiaram-se os crimes políticos, deixaram-se de fora os crimes de terrorismo, subversão e todos os crimes de violência física, aí incluindo a tortura. Então, a OAB não mudou o seu ponto de vista. Tenho dito ainda hoje que a anistia aprovada foi restrita e não poderia tratar de tortura. Ainda que admitíssemos que tivesse lá um texto, expresso, dizendo "estão anistiados os torturadores brasileiros", isso de nada valeria porque a legislação internacional não aceita esse argumento. Se foi uma anistia durante o regime militar, feita pelos militares, nós teríamos a chamada "auto-anistia". Estariam se auto-anistiando de crimes por eles próprios praticados, o que não é aceito pelos Tribunais internacionais.
P - Quando que a OAB espera que o Supremo resolva esse caso?
R - O mais rápido possível, para ficarmos em paz com a nossa história. A história é um bem inalienável do cidadão, ele tem que saber o que aconteceu, quem cometeu esses crimes. Poderíamos até fazer como em alguns países se fez: se constituiu Comissões de Verdade para dizer quem torturou e acabaram por não puni-los. Mas o que não se pode é esconder, na ignorância, a idéia de que no Brasil não se praticou esse tipo de crime. Confundiram, para nós, anistia com amnésia e nós não podemos cometer esse erro. Se não revelarmos o passado, não discutirmos abertamente o que aconteceu no passado, podemos repetir esses erros do passado e nós não podemos correr o risco de o Brasil voltar a ter, de novo, uma ditadura militar.
P - Quando o Supremo julgar essa ação da OAB, qual será a repercussão que ela vai ter, caso seja favorável ao interesse de vocês?
R - Eu tenho a impressão de que o Brasil vai ter que compreender o seu papel no mundo. Hoje, o Brasil está cada vez mais respeitado. Cada vez o Brasil firma o pensamento de que é um País democrático. E o mundo todo está de olho nessa decisão do Brasil. Quero que o Brasil julgue os torturadores para que não julguem, lá fora, o dever de casa que não fizemos. Essa discussão está em vários Tribunais internacionais, pois há várias pessoas que não conseguiram enterrar seus filhos porque seus corpos estão desaparecidos. E essas pessoas estão ajuizando ações contra o Brasil lá fora. E é por isso que nós levamos essa matéria para o Supremo Tribunal Federal, que terá que dar a palavra final. Vamos colocar uma pá de cal no assunto com a decisão do STF.
P - O fato de o Ministro Eros Grau ter sido vítima da opressão, pode interferir em alguma coisa?
R - Não. Acho que ele vai agir como jurista. O passado dele não interfere na decisão judicial, isso não. Acho que o ministro Eros Grau, recebendo esse processo, vai ter toda uma legitimidade histórica para julgar. Espero eu que, tendo sido ele uma vítima dessa tragédia brasileira, compreenda que as tragédias têm que ser resolvidas, para o bem do Brasil.
P - Suponhamos que a tese da OAB seja vencedora na Suprema Corte, qual será o próximo passo? Sendo a tortura reconhecida como crime naquela época, já conhecemos quem foram esses torturadores?
R - Por isso agimos de forma conjunta. Temos uma outra ação, mais antiga do que essa, que busca a abertura dos arquivos desse período. Nós temos também a idéia de que devemos contar a verdade, pois o direito à verdade é um direito alienável. Com essas duas ações conjuntas e o Estado reconhecendo o seu dever de punir aquele que cometeu um crime grave de lesa-humanidade, teremos que processar aqueles que torturaram. Os que já são conhecidos serão brilhantemente processados. Os que não são, depois de revelados a partir da abertura dos arquivos, serão processados.
P - Tem gente que diz que trazer esse assunto à tona agora é um pouco constrangedor, que retoma um assunto já esquecido. Como o senhor argumenta contra isso?
R - Nós não podemos esquecer o passado e esse passado é recente. O torturador pode ser um conhecido seu, pode ser alguém que está ao seu lado, ninguém sabe. Precisamos saber quem cometeu essa anomalia grave. Pegar um ser humano desarmado, à disposição do Estado, e dar a ele o tipo de violência que se praticou no Brasil é absurdo. Pessoas eram estupradas na frente de companheiros. Pessoas perderam crianças porque a tortura lhes atingiu em pontos que eram vitais. Precisamos saber o que é isso. Democracia que não resiste à sua história não é democracia. Não podemos ter medo disso. É assim que está sendo feito na Argentina, no Paraguai, no Uruguai, e, pelo o que sei, esses países não são tão mais democráticas do que nós. Enfim, temos que começar a pensar: se o Brasil se orgulha de sua democracia, não pode ter medo do passado.
P - Quando o ministro Nelson Jobim (Defesa) defende que esse assunto não seja tratado, o senhor acha que esse é uma decisão política, de não desagradar seus pares no Exército, Marinha e Aeronáutica?
R - Essa é uma questão delicada, pois acabou se envolvendo o Exército, a Marinha e a Aeronáutica numa discussão que não era deles. O Exército não torturou. As Forças Armadas não torturaram, não era política de governo a tortura. O próprio Geisel dizia isso, quando ficou assustado numa conversa com o ex-presidente da OAB Raimundo Faoro e este pediu que se restabelecesse o habeas corpus para evitar torturas. Geisel negou que houvesse tortura. No conflito com Sílvio Frota, quando quis endurecer, mais uma vez se mostrou que o Estado não compactuava com a tortura. Então, o regime militar não compactuou, não dá para colocar essa pecha. O medo e o uso da politização da tortura no regime militar é que está fazendo com que eles vistam carapuça que não é deles. Não estamos acusando os militares disso, estamos acusando parte do setor que participava ativamente daquele governo e que torturava. E não eram só militares, era a polícia civil, cidadão comum que participava do sistema de repressão. É esse grupo isolado que queremos punir. Esses cometeram crime, crime grave, não o crime político. Os crimes políticos estão anistiados. Por exemplo, alguém cassou um parlamentar. Quem deu a ordem para cassar o parlamentar está anistiado, embora tenha cassado a vontade popular, trata-se de um crime político. Se alguém tentou prender alguém sem ordem judicial, levou para a cela, interrogou, deixou em cárcere privado por três meses para interrogar, mas não cometeu a violência física, a tortura, está anistiado. Quem foi para jornais censurar notícias, impedindo os cidadãos de conhecer a verdade, está anistiado, pois é crime político. Mas a tortura, não. Aí nós não podemos compactuar com quem comete esse grave crime contra a humanidade.