Repercussões econômicas de decisões judiciais preocupam magistrados
A morosidade processual e decisões judiciais que revisam negócios praticados pelo mercado têm causado insegurança jurídica e prejudicado o desempenho econômico em diversos países. É o que demonstram estudos publicados nos últimos anos no Brasil e no exterior. Cientes dessa situação, os magistrados se deparam cotidianamente com o dilema de ter que dar respostas aos conflitos de natureza econômica levados à sua apreciação.
Em circunstâncias como essas, um dilema comum surge diante dos juízes: na hora de decidir, o que deve ter peso maior, a lógica da eficiência econômica ou valores ligados a direitos fundamentais dos cidadãos? Essa e outras questões foram tema do curso “Impacto Econômico e Social das Decisões”, oferecido no início desta semana em Brasília pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam).
Durante dois dias, juízes de vários estados do país debateram aspectos relacionados ao tema, que cada vez mais está presente no dia a dia dos fóruns. O curso, que teve o objetivo de formar multiplicadores, foi ministrado pelo desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) Rogério Gesta Leal.
Doutor em Direitos Humanos e do Estado, Leal defende que os magistrados tenham formação multidisciplinar e sensibilidade para compor conflitos e equilibrar interesses quando apreciam questões jurídicas que influenciam a economia.
Em entrevista à Coordenadoria de Imprensa do STJ, o desembargador falou sobre alguns temas que envolvem direito, economia e atuação dos juízes.
P - Estudos mostram que, em diversos casos, as decisões judiciais impactam negativamente as relações econômicas no Brasil. Sob o ponto de vista do Judiciário, quais são as soluções possíveis para a melhoria desse quadro?
Rogério Gesta Leal - É preciso haver uma sensibilização da magistratura brasileira para a complexidade das relações sociais, marcadas hoje por variados fatores. Um tema que aparentemente é jurídico, no sentido de ser tratado e regulado por lei, tem implicações de natureza econômica, social e política. Essas dimensões extra-normativas precisam ser consideradas pelo julgador. Uma questão que envolve, por exemplo, uma decisão sobre licitação pública vai ter sérias repercussões na esfera econômica, impactando pessoas jurídicas e físicas envolvidas no processo licitatório. Nós temos hoje uma série de situações que exigem do magistrado uma sensibilidade e uma formação multidisciplinar para permitir que ele possa tratar de questões jurídicas com impactos econômicos.
P - Como é possível equilibrar a necessidade de decisões mais rápidas, com menos prejuízo para a economia, com o imperativo da fundamentação de decisões que consideram não somente a lógica de mercado, mas outros valores jurídicos?
RGL - Essa é uma equação bastante complexa. De um lado, tem-se a Constituição brasileira que abre seu texto com o Título I, que trata dos princípios que remetem para os direitos fundamentais, dentre eles os sociais. Não é por acidente que, topograficamente, a ordem econômica e social esteja nos artigos 170 e seguintes da Constituição. Está lá porque, antes dela, há um universo de valores objetivos e finalidades republicanas que a condicionam na medida de suas forças. Ou seja, a ordem constitucional estabelece como seu pressuposto e fundamento a dignidade da pessoa humana, o valor social do trabalho, os direitos humanos fundamentais. Portanto a leitura que se pode fazer disso é que, sempre que estiverem periclitando interesses objetivos e finalidades econômicas em detrimento de interesses objetivos e finalidades ligadas a direitos humanos fundamentais, estes é que deverão receber prioridades de tratamento. Por outro lado, sempre que possível, é necessário buscar a integração desses comandos normativos. Ao integrá-los, é importante criar condições para que os princípios da ordem econômica e dos direitos fundamentais convivam bem entre si.
P - O sr. disse que o “Fator Judiciário” tem impactos significativos no custo do negócios. O que vem a ser esse “Fator” e como se dá esse impacto?
RGL - Vamos analisar o caso das alienações fiduciárias (tipo de garantia na qual há a transferência da propriedade de um bem do devedor ao credor para garantir o pagamento da dívida). Quando o Poder Judiciário revisa contratos dessa modalidade, reconhecendo que nesses há cláusulas abusivas que devem ser extirpadas da relação negocial – como juros compensatórios, comissão de permanência etc -, esta decisão judicial torna instável a relação contratual inicialmente pactuada. Ao fazê-lo, quebra a expectativa dos contratantes originais. Mais do que isso: impacta a previsibilidade de ganhos ou de benefícios que foram causa do próprio negócio. Portanto, com suas decisões, o Judiciário sempre provoca quebra de expectativa de uns ou a satisfação da expectativa de outros. Na realização de sua atividade, o Judiciário tem que cuidar para que os danos e os ônus sejam os mínimos possíveis.
P - O sr. reconhece a existência de interesses que se sobrepõem à lógica de mercado, mas chama a atenção para o que denomina “voluntarismo judiciário”. O que é o voluntarismo e como ele pode prejudicar as relações econômicas?
RGL - Quando o Poder Judiciário toma decisões sem levar em conta as múltiplas variáveis que compõem o caso, focando apenas um interesse unilateral envolvido, ainda que atue em nome da efetivação de um direito fundamental, pode violar drasticamente outro direito. Por exemplo, quando um magistrado determina que seja fornecido medicamento de R$ 50 mil para um único usuário, sem sequer investigar a possibilidade do uso de um genérico ou de outro tratamento alternativo com menor custo, pode inviabilizar vários outros pedidos e tratamentos que poderiam ser realizados com uma quantia semelhante. Assim, é importante que o magistrado leve em consideração que sua ação judicial tem consequências sociais. E que, quando está manejando direitos sociais pedidos por indivíduos, esses direitos têm a função de atender toda a comunidade, e não exclusivamente uma pessoa.
P - O sr. defende que o Judiciário é hoje um espaço de interlocução, uma arena de solução de conflitos. Como os juízes podem auxiliar nessa tarefa de compor conflitos na área econômica?
RGL - Eu vejo a lide (conflito de interesses sob apreciação do Judiciário) como um momento de pacificação. Para isso, o magistrado deve dispor de ferramentas de composição e de mediação.Tem que ter sensibilidade para isso: conciliar e compor. Mais do que isso: tem que ter presente qual é o objeto do conflito, haja vista as suas conseqüências para fora do processo. Com essa percepção, ele pode fazer proposições compositórias que, se não vão atender de forma absoluta a todos, pelo menos amainarão o impacto da decisão para o entorno desse conflito.
P - Em que medida as pressões de outros países e organismos internacionais por uma uniformização do entendimento jurídico sobre questões relevantes para a economia podem influenciar as decisões dos magistrados brasileiros?
RGL - Há determinadas questões que estão no plano na transnacionalidade. Estão num patamar de decisão e deliberação que foge da capacidade de controle da esfera nacional. Veja por exemplo a questão que envolve os contratos de importação e exportação. O mercado internacional é incontrolável. Não raro ele apresenta surpresas negativas envolvendo essa questão. Uma decisão que versa sobre o aço na China pode causar impactos no fornecedor do produto no Brasil. E todas as declinações que decorrem do aço, e que foram objetos de contratos no plano nacional, estariam afetadas por essa sistemática internacional. Sob o ponto de vista econômico, vivemos numa aldeia global que está em regime de inter-relação e interferência recíproca. Temos que aprender a lidar com esse tipo de tensão como magistrados porque esta é lógica cuja existência não depende da nossa vontade. Temos que aprender a conviver com a perspectiva da mudança, da surpresa, e termos a sensibilidade de adequar os institutos jurídicos e a interpretação judicial para a solução do caso a essas circunstâncias.
P - Ao contrário de que muitos afirmam, o sr. não considera a Justiça cara, mas sim o custo do processo. O que o encarece?
RGL - Temos problemas intra-sistêmicos e extra-sistêmicos. Os primeiros são os que ainda estão sendo discutidos no país neste momento, que são as reformas processuais. É preciso que o sistema processual brasileiro melhore muito, se racionalize mais e encontre fórmulas mais enxutas, céleres e menos recorríveis. Nos segundos, temos o aspecto que envolve a “cultura da guerra”. A formação do bacharel em Direito no Brasil sempre foi vocacionada para o conflito, para a beligerância. As faculdades de Direito ensinam guerrear, não a pacificar. Essa formação do bacharel se reproduz, se projeta no mercado. Para o cliente comum, o sinônimo do advogado exitoso é aquele que vence a causa. Essa cultura, associada a um sistema processual irracional, provoca um custo altíssimo do processo no Brasil.
P - O sr. acredita na existência de uma “indústria de liminares” no país? Caso afirmativo, como ela prejudica os negócios na economia?
RGL - Indústria de liminares é um jargão equivocadamente utilizado por alguns setores da imprensa e do setor produtivo no Brasil e no exterior. É uma percepção equivocada de um exercício normal da jurisdição, que tem sido responsável quando aprecia e delibera sobre matérias atinentes a medidas de urgência, como as tutelas antecipadas e as decisões liminares propriamente ditas. A verdade é que há decisões judiciais que causam maiores ou menores impactos na vida econômica e nas relações sociais.
P - O que o sr. acha das opiniões de alguns economistas brasileiros e estrangeiros, que veem com reserva a regulação jurídica dos negócios?
RGL - O debate que os economistas têm feito é que essa atividade de regulação jurídica requer cuidados sob pena de causar mais danos do que benefícios quando tenta artificializar, pela letra fria da lei, determinados comportamentos de mercado que não são factíveis em termos de relações econômicas mundiais. É preciso que a própria legislação observe essa dinâmica mutacional do mercado para que não exija dele o que ele não pode dar faticamente, que são a previsibilidade, a segurança e a certeza absoluta que, em tese, as normas jurídicas tendem a querer dar.