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STF aplicou princípio da tolerância ao julgar reserva indígena

Por Roberto Lemos dos Santos FilhoO ano 2009 já está marcado na história brasileira pelo julgamento do Supremo Tribunal Federal no caso relativo à terra indígena Raposa Terra do Sol, no estado de Roraima. Apesar de representar inquestionável conquista dos indígenas que habitam aquela região, o precedente trouxe preocupações aos estudiosos do assunto, em vista da imposição de condicionantes permeadas pela superada visão integracionista, e com viés manifestamente desenvolvimentista.

Denota tal inferência, a menção em um dos votos a estabelecimento de marco temporal de ocupação por índios, a data da promulgação da Constituição em vigor, para que uma terra seja reconhecida como indígena. Tal entendimento vai de encontro a estudos científicos nas áreas da antropologia e da sociologia, não encontra amparo no campo fático, servindo somente para fomentar a intolerância. O mesmo se verifica com relação à condicionante relativa a vedação de ampliação de terra indígena já demarcada.

A retratar o equívoco mencionado é a situação enfrentada pelos índios de hábito nômade Guarani-Kaiowa da região de Dourados (MS), segundo maior pólo indígena urbano do Brasil. Com efeito, os indígenas da localidade tiveram seus territórios expurgados pela expansão agrícola, e hoje cerca de 11 mil indivíduos vivem em 3,5 hectares, sobrevivendo em situação de miserabilidade, em condições indignas, muitas vezes tendo acesso a recursos vitais muito inferiores aos conferidos ao gado de corte pelos criadores da região.

A situação verificada naquela região é extrema, com a incidência de elevado número de suicídios por parte de índios que perderam a esperança indispensável à sobrevivência. E a intolerância chegou a tal ponto que contaminou o Judiciário local que, sem atentar ao disposto no artigo 3º do Estatuto do Índio, e ao previsto no artigo 1º, item 2, da Convenção 169 da OIT, impediu a intervenção de Procuradores da Funai em favor de índios acusados pela prática de crimes, ao fundamento deles serem “aculturados”.

Tal entendimento fundou-se em ultrapassada visão etnocêntrica integracionista que permeou toda a legislação brasileira editada até o advento da Constituição de 1988, e que na atualidade não pode mais prevalecer. Referida forma de pensar se funda na falsa idéia de que natural seria a “evolução” dos indígenas para os padrões da cultura estabelecida pelos colonizadores, o que hoje não mais se sustenta em face do preconizado pela Declaração da ONU sobre os direitos dos Povos Indígenas (setembro 2007).

A afastar dúvida acerca da intolerância que prevalece naquela região, é o recente julgamento proferido pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região que determinou o desaforamento de julgamento de acusados pela prática de homicídio contra o Cacique Kaiowa Marcos Veron, reconhecendo a falta de isenção do corpo de jurados. Por votação unânime, o Tribunal reconheceu que a questão indígena é muito sensível naquela região e assentou a falta de imparcialidade do corpo de jurados para a solução do caso.

O artigo 1º da Declaração de Princípios sobre a Tolerância aprovada pela Conferência Geral da Unesco (Paris/1995), define a tolerância como o respeito, a aceitação e apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, é a harmonia na diferença. De acordo com o comando citado, a tolerância é o sustentáculo dos direitos humanos, do pluralismo (inclusive o pluralismo cultural), da democracia e do Estado de Direito.

Ainda segundo o citado instrumento internacional dos direitos humanos, a tolerância implica a rejeição do dogmatismo e do absolutismo e fortalece as normas enunciadas nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos. Significa aceitar o fato de que os seres humanos, que se caracterizam naturalmente pela diversidade de seu aspecto físico, de sua situação, de seu modo de expressar-se, de seus comportamentos e de seus valores, têm o direito de viver em paz e de ser tais como são.

Os princípios da Declaração de Princípios sobre a Tolerância (Unesco-1995) devem orientar as políticas públicas e lastrear todas as decisões judiciais relativas aos índios, sobretudo pelo fato de a Constituição brasileira reconhecer o caráter pluriétnico do país (artigos 210, parágrafo 2º, 215, parágrafos 1º e 3º, inciso V, 216 e 231). É necessário seja assegurada convivência harmônica entre as culturas diferentes, com respeito e tolerância, e proporcionar aos índios brasileiros o direito de viverem com dignidade.