Supremo deverá barrar lei da videoconferência
Por Paulo Sérgio Leite Fernandes e Rogério Seguins Martins Junior
O presidente da República, mesmo em descanso, sancionou, transformando em lei, o projeto que previa a possibilidade de realização de interrogatório e outros atos processuais por sistema de videoconferência (Lei 11.900, de 8 de janeiro de 2009). A lei entra em vigor na data da publicação, ou seja, no dia 9 de janeiro do ano corrente.
O projeto original advém do deputado paulista Carlos Sampaio, ilustre membro do Ministério Público. Era seco. Durante a tramitação, foi recebendo emendas, transformando-se no texto final aprovado. Atende-se, com a publicação da lei nova, a reivindicação emanada sobretudo do estado de São Paulo, sabendo-se que já houve, nos setores competentes, provisão adequada a que o instrumental apto a videoconferências seja posto a funcionar na plenitude, havendo, é certo, experiências postas aqui e ali em uma ou outra vara criminal da capital do Estado. Há, nos debates, vozes entusiasmadas defendendo a implantação definitiva da novidade, nisto sobressaindo, na classe dos advogados, o culto ex-juiz Luiz Flávio Gomes, provavelmente habituado ao valimento da mídia eletrônica, pois trabalha habitualmente com o sistema (cursos virtuais).
Já houve oportunidade de experiência prática do sistema, destacando-se a ação penal número 977/2006, da 13ª Vara Criminal de São Paulo. Houve, no transcurso da audiência feita pelo método de videoconferência, episódio tragicômico, porque o técnico encarregado da aparelhagem, irritadíssimo, queria proibir o advogado de se movimentar, pois o causídico escapava à angulação das lentes. No contexto, os réus a serem interrogados se encontravam recolhidos em local diverso. Seus advogados estavam, fisicamente, próximos do juiz. Havia um telefone à disposição para que o defensor e seu constituinte se comunicassem. Aquilo tudo funcionava sinuosamente, assemelhando-se a uma ficção. Daí o uso, hoje corrente, da expressão “virtualidade”.
Poderia haver, em alternativa, a hipótese de o advogado estar no presídio, com o réu, correndo o ato de interrogatório e a própria instrução criminal a seiscentos ou mais quilômetros de distância, afastando-se o juiz do acusado e do defensor em igual dimensão. Mais ainda, encerrado o defensor nos limites do presídio, ficaria o mesmo privado de consultar os autos. Há muito, desde o surgimento da tentativa de inovação, os subscritores se põem contra a mesma, entendendo-a inconstitucional, porque, no frigir dos ovos, havia e há violação do artigo 5º, inciso LV, da Carta Magna.
Aliás, há várias medidas em tramitação no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça visando a demonstração de ofensa incidental à Constituição brasileira. Enquanto a disputa se acirrava no Poder Judiciário, o projeto de lei respectivo tramitava, assumindo, agora, forma impositiva, prevendo que o interrogatório de réu preso possa ser realizado em sala própria no estabelecimento em que estiver recolhido, desde que esteja garantida a segurança do juiz, do membro do Ministério Público e dos auxiliares, bem como a presença do defensor e a publicidade do ato.
Isso está no parágrafo 1º do artigo 185 do Código de Processo Penal, assim modificado. Bem examinada, a previsão referida é saudável, pois leva o juiz a um contato mais íntimo com o réu e com o cárcere, conhecendo-se a dificuldade existente na concretização de tal proximidade. De certa maneira a inovação estimularia o princípio da imediatidade, circunstância posta hoje objetivamente na Lei 11.719/08, mas de duvidosa execução, porque sempre se encontrará, no meio tempo, uma forma de suavisação da exigência, como tudo o que acontece no trato das garantias individuais.
O parágrafo 2º do artigo 185, posto na lei nova, permite ao juiz realizar, por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, o interrogatório de réu preso, desde que se pretenda prevenir risco à segurança pública quando exista fundada suspeita de que o réu preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento.
Há outra hipótese para a opção, ou seja, aquela de se viabilizar a participação do réu no interrogatório se houver dificuldade relevante para seu comparecimento em juízo por enfermidade ou outra circunstância pessoal. Uma outra alternativa: impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do artigo 217 deste Código.
Por fim, há outra situação hipotética, consistente em texto esquisitíssimo: “... responde a gravíssima questão de ordem pública”. Quanto a tal dispositivo, pode-se entender que haja a preocupação de repercussões do fato na comunidade. Melhor explicação não há. Vale apenas, por enquanto, o horror deixado nos comentaristas pela extravagante crase posta no texto: “... responde à gravíssima questão de ordem pública”. Frente a tal excrescência, os subscritores conferiram o texto no Diário Oficial da União, verificando que o sinal gráfico ali está, lancetando o vernáculo. Obviamente, não compete ao Presidente da República verificar a exatidão do texto que subscreve, mormente estando em merecido descanso em paradisíacas praias brasileiras. Tocante à Lei 11.900, teria apenas determinado que sua assinatura eletrônica fosse aposta, merecendo lembrar que, embora sendo bom criador de metáforas, o dignatário não tem na gramática sua maior qualidade. Suas virtudes, de resto bem conhecidas, sobressaem com vantagem.
O parágrafo 3º do artigo 185 permite ao réu preso, quando for interrogado por videoconferência, acompanhar, pelo mesmo sistema, a realização de todos os atos da audiência única de instrução e julgamento de que tratam os artigos 400, 401 e 531 deste Código. Note-se a particularidade consubstanciada em “poderá acompanhar”. Isso significa que o recluso também pode não acompanhar, não se sabendo como, cuidando-se o interrogatório de meio de defesa e exercendo o réu, este sim a atividade defensiva, sendo o advogado um mero intérprete de tal comportamento, pode o acusado ser dispensado de tal participação. Na verdade, é da antiga jurisprudência que o réu preso precisa ser requisitado para acompanhar os atos de instrução. Aqui, o tratamento outorgado à indispensabilidade da presença do réu significa claramente que o acusado, no contexto, se torna um pacote incômodo que a lei, astutamente, procura colocar numa gaveta empoeirada, prosseguindo-se, pragmaticamente, na tramitação do procedimento.
No parágrafo 5º do artigo 185, a lei prevê a garantia ao réu do direito de entrevista prévia e reservada com seu defensor, prevendo-se, se realizado o ato por videoconferência, o direito a acesso a canais telefônicos reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o advogado presente na sala de audiência do fórum e entre este e o preso. Cuida-se de escrito com interpretação nebulosíssima porque, em princípio, o texto parece afirmar que a comunicação telefônica se faria entre um advogado presente à audiência e outro posto no presídio e, em seqüência, uma comunicação entre o último advogado e o preso. Dentro desta alternativa, o recluso teria um defensor no presídio a ouvi-lo e outro advogado na audiência, comunicando-se os dois causídicos para depois — e só depois — o último preposto entrar em comunicação com o réu. Isto é cômico. Não se preocuparam os subscritores em saber qual foi o autor da extravagância, mas a hermenêutica judicial há de ter trabalho insano para assentar a inteligência do texto. Um esforço sincero de análise do teor do parágrafo referido pode levar à conclusão de que deve haver um advogado junto ao acusado, no presídio, e outro defensor no fórum, ambos cuidando da atividade defensiva, servindo o primeiro de intermediário entre o recluso e o segundo causídico. Os atos de comunicação seriam consubstanciados por uma linha telefônica reservada aos advogados e, obviamente, ao réu ausente, numa espécie de telefone vermelho.
Nas contingências do momento histórico vertente, com advogados sendo espiolhados nos parlatórios e nas comunicações com clientes, dificilmente um defensor terá tranqüilidade suficiente para se comunicar com o réu preso durante a instrução criminal, mesmo havendo garantia de manutenção da intimidade. Infelizmente, e independendo mesmo da confiabilidade que o Poder Judiciário pode e deve ter, há uma expressão popular afirmando que “gato escaldado não põe a pata em água quente”. É trágico, é dramático até, mas é peculiaridade que precisa ser muito bem assentada dentro da verrumação do texto questionado.
Os parágrafos sexto, sétimo e oitavo da lei nova cuidam, o primeiro, de fiscalização do sistema pelos juízes, pelo Ministério Público e pela Ordem dos Advogados; o segundo admite a requisição de réu na hipótese de não se realizar o ato por videoconferência; o terceiro amplia a videoconferência, permitindo-lhe a aplicação nas acareações, reconhecimento de pessoas e coisas ou inquirições. O parágrafo 9º garante ao acusado e seu defensor o acompanhamento dos atos processuais.
A alteração do artigo 222 do Código de Processo em vigor foi sancionada com dois vetos e promulgação do parágrafo 3º. Este, cuidando da oitiva da testemunha por carta precatória, admite a consumação via videoconferência, havendo aquilo que o intérprete pode classificar como ato de benevolência do legislador, afirmando-se que “é permitida a presença do defensor”. Prevê-se a possibilidade de realização da videoconferência por precatória no entremeio da realização da audiência de instrução e julgamento. Pretendeu-se, no contexto da lei nova, enfrentar, em atividade processual manquitolante, as modificações trazidas pela Lei 11.719, enquanto se pretende, ali, a concentração do procedimento numa audiência só.
No entretempo, prevêem os subscritores desta síntese uma tarefa hercúlea a ser desenvolvida na Suprema Corte. Percebe-se, na verdade, que o Supremo Tribunal Federal tem, hoje, sobremaneira, a missão de manter os paradigmas estipulados na Constituição Federal. O Estado Democrático de Direito tem seus termômetros balizados, sobretudo, nos indicadores do tratamento outorgado ao Direito Penal e ao procedimento persecutório. Sempre foi assim. Quando se pretende saber qual a vocação democrática ou autoritária de uma nação, pesquisa-se a maneira pela qual as perseguições são materializadas e a atividade defensiva é garantida.
O Estado brasileiro vem correndo muito sério risco de desequilibrar, ideológica e concretamente, as relações entre o Poder e a cidadania. Verifica-se isso com a investida irada contra as garantias constitucionalmente outorgadas ao cidadão, desviando-se a perseguição reiteradamente no descarnamento da intangibilidade do advogado enquanto se laceia, com enorme dose de falta de vergonha, a imaculabilidade do segredo profissional.
O Brasil, nesta peculiaridade, vai muito mal. Tocante ao aspecto ideológico, o próprio cidadão foi convencido de que circunstâncias ligadas a uma ou outra hipótese acusatória podem justificar a restrição às prerrogativas constitucionalmente asseguradas, instilando-se entre os próprios juristas, muito deles respeitados, o veneno do denominado “Direito Penal do Inimigo” ou, para alguns, o sinônimo de “Direito Penal do Autor”. Isso é coisa velha. Vem, entre outras ideologias corrosivas, do neo-socialismo nazi-fascista. Os jovens juristas brasileiros correm, inclusive, risco sério de contaminação dessa vertente significativa de um vitupério ao Direito Penal clássico.
As observações derradeiras se entranham nas justificativas postas no próprio projeto de origem. Admite-se, ali, que o Estado-Acusação não tem meios materiais para a imposição de celeridade aos processos, resultando disso relaxamentos de prisão e prejuízo sobre o acusado. A admissão de tais defeitos transforma o Estado, sim, em ativador de uma outra espécie de auto-delinqüência (pessoas jurídicas se alheiam ao Direito Penal), porque o retardamento do trato dos direitos do preso constitui, o mais das vezes, exercício arbitrário de função pública ou abuso de poder.
Não pode a autoridade exigir comportamento adequado dos jurisdicionados enquanto se comporta com agressão aberta e direta à própria lei que lhe delimita a atividade persecutória. Angustiadamente, percebem os intérpretes que o conflito entre o perseguidor e o perseguido transforma uns e outros em duas classes de infratores, empunhando cada qual a bandeira de uma cor diversa. Resta à Suprema Corte, insista-se, encargo poucas vezes divisado na história da nação, ônus este que vem sendo cumprido com imensa galhardia, resistindo os ministros a agressões insidiosas e tentativas fortíssimas de denegrimento da toga dos juízes, agressões estas advindas, agora, de um ou outro legislador ansioso por quebrar, insanamente, a vitaliciedade dos Ministros do Supremo Tribunal Federal.
A legislação correspondente à videoconferência é exemplo típico da confissão de negligência no tratamento outorgado aos presos brasileiros. Nunca, no Brasil, houve porcentagem maior de condenações em alternativas atinentes a crimes graves.
O Poder Judiciário brasileiro, ressalvadas exceções que, por serem exceções, são minoritárias, tem na conduta jurisdicional, seguidamente, o influxo do medo. Alguém já afirmou – os subscritores não se lembram de quem foi – que o medo incha como o almoço desavisado ou vinho de má estirpe. O medo da crítica, o pavor da investida desonrosa, o receio da increpação de má-conduta é dos piores defeitos que o magistrado pode ter. Nesse diapasão, o Supremo Tribunal Federal tem comportamento absolutamente imaculado. Dentro da advocacia criminal, advogados e juízes não podem ser ligados por laços outros que não sejam o respeito mútuo, a elegância e a educação.
Em outros termos, as relações entre uns e outros nem sempre são cordiais. Vale, entretanto, a análise externa da forma pela qual os magistrados se apresentam à coletividade. Já se disse isso e já se escreveu outro tanto na literatura atinente à espécie. Agora, repita-se, a Suprema Corte brasileira desenvolve com extrema proficiência a tarefa de manter intocados os pressupostos que fazem da nação um Estado Democrático de Direito e não servo do autoritarismo insuflado pelos ares de padrões advindos do Velho Mundo. Um dos sintomas do combate é, certamente, a lei que instituiu a videoconferência. O Supremo Tribunal Federal saberá lidar com isso. Para melhor interpretação do conflito jurisprudencial existente, leia-se o Habeas Corpus 88.914-0, de São Paulo, sendo relator o ministro Cezar Peluso e impetrante a advogada Patrícia Helena Massa Arzabe.