Voto sobre Lei de Imprensa equilibra liberdades
Por Marcelo Ribeiro
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal apreciou questão das mais relevantes: a alegada inconstitucionalidade da Lei 5.250/67, a chamada Lei de Imprensa. Editada durante o regime militar, essa lei, que tinha como escopo “regular a liberdade de manifestação do pensamento e de informação”, foi atacada pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 130, movida pelo Partido Democrático Trabalhista, liderado, no caso, pelo deputado Miro Teixeira.
A missão do Supremo não era fácil. De um lado, poderia parecer incoerente assentar a inconstitucionalidade de uma lei que já vigorava há cerca de 41 anos e que foi aplicada pelo Judiciário nos mais de 20 anos de vigência da atual Constituição. Alguns sustentavam, aliás, que os artigos da Lei de Imprensa que com o novo Texto Maior não se compatibilizavam já haviam sido, pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal, retirados da ordem jurídica. Exemplificativamente, era o caso dos artigos que estabeleciam limites na indenização devida pela empresa jornalística em caso de condenação por matéria ilícita publicada, o que estabelecia prazo muito reduzido para a propositura da ação, entre outros. Para esses intérpretes do Direito, melhor teria sido que o STF tivesse se limitado a uma declaração parcial de incompatibilidade da lei com a Constituição.
De outra parte, havia os que proclamavam a absoluta impossibilidade de convivência da integralidade da Lei 5.250 com a Carta nascida da constituinte de 1988. Essa, no dizer do saudoso Ulysses Guimarães, a “Constituição cidadã”, teria sido forjada não só como símbolo de uma sociedade livre e democrática, mas também para servir de impulso à concreção de um Brasil mais justo e igualitário, onde a liberdade e o direito fossem os fundamentos do país. Para esses, não se poderia sequer admitir a ementa da lei, que fala em regular a liberdade de manifestação do pensamento, que não estaria sujeita a tal regulação.
Cabia ao STF encontrar a solução mais adequada à ordem jurídica. A Corte, por maioria, considerou que a Lei de Imprensa, em sua integralidade, era incompatível com a Constituição. Todos os votos proferidos revelaram aprofundamento no exame da matéria, o que leva a comunidade jurídica a aguardar, com curiosidade intelectual, a publicação do acórdão. Tive a oportunidade de acompanhar a prolação do voto do ministro Menezes Direito, primeiro a se pronunciar após o relator da matéria, ministro Carlos Britto. Humanista convicto, com origem na advocacia — profissão que depende, essencialmente, da liberdade e da democracia — desde o julgamento da medida cautelar Menezes Direito se posicionou pela incompatibilidade integral da Lei de Imprensa com o sistema constitucional vigente. Ele, contudo, não adotou a tese da liberdade irrestrita e irresponsável da mídia. Seu voto, verdadeira aula a respeito do tema, demonstra, com precisão, o delicado equilíbrio que se deve manter entre a liberdade de expressão e os direitos da pessoa, entre os quais avultam os relativos à honra, à intimidade e à imagem. Mencionando autores de diversos países, bem como o entendimento de tribunais estrangeiros, Menezes Direito traça, com mestria, essa linha tênue que separa a liberdade de expressão da eventual agressão aos direitos das pessoas comuns.
De leitura extremamente agradável, inclusive para leigos, o voto do ministro Direito deixa claro que, na tensão dialética que surge entre tais direitos — o da liberdade de expressão e os da personalidade — deve-se procurar prestigiar o primeiro, mas não de tal modo que aniquile o segundo. Passagem de seu voto bem reflete a dificuldade da questão. Confira-se:
“O que se tem concretamente é uma permanente tensão constitucional entre os direitos da personalidade e a liberdade de informação e de expressão, em que se encontra situada a liberdade de imprensa. É claro, e afirmei isso ao votar na medida cautelar, que quando se tem um conflito possível entre a liberdade e sua restrição deve-se defender a liberdade. O preço do silêncio para a saúde institucional dos povos é muito mais alto do que o preço da livre circulação das ideias. A democracia, para subsistir, depende de informação e não apenas do voto; este muitas vezes pode servir de mera chancela, objeto de manipulação. A democracia é valor que abre as portas à participação política, de votar e de ser votado, como garantia de que o voto não é mera homologação do detentor do poder. Dito de outro modo: os regimes totalitários convivem com o voto, nunca com a liberdade de expressão.”
O ministro, contudo, atento às características naturais dos seres humanos, adverte:
“Tendo a ver de outro ângulo essa dificuldade. É que estou convencido cada dia com maior intensidade de que quanto mais forte se põe a instituição, mais frágil se torna. Por quê? Porque estimula a arrogância e enaltece o arbítrio e a sensação de permanente acerto. Isso me leva à compreensão de que só existe garantia de preservação institucional quando um sistema de pesos e contrapesos é posto num mesmo patamar de proteção, de tal modo que sejamos capazes de identificar limites. Limites são sempre esteio da convivência social, como apanágio mesmo da tolerância e da capacidade humana de superar o absoluto, que não é compatível com a natureza mesma das sociedades democráticas. Nenhuma instituição pode arrogar-se em deter o absoluto, a vedação inconsequente de encontrar o seu espaço de agir desrespeitando o espaço de agir das outras instituições.”
A conclusão, contudo, exposta com clareza, é inequívoca: não se admite lei que venha com o intuito de restringir ou coagir a liberdade de informação jornalística. Não é, na dicção do ministro, “possível legislar com conteúdo punitivo, impeditivo do exercício da liberdade de imprensa, isto é, que se criem condições de intimidação.”
Em resumo, trata-se de um voto lapidar, onde a liberdade de imprensa é enaltecida, mas compatibilizada com a preservação da dignidade da pessoa humana.
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Marcelo Ribeiro é advogado e ministro do Tribunal Superior Eleitoral