Artigo: Battisti e as relações Brasil-Itália
Rio de Janeiro, 30/01/2009 - O artigo "Battisti e as relações Brasil-Itália" é de autoria do presidente da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) do Rio de Janeiro, Wadih Damous, e foi publicado na edição de hoje (30) do jornal Correio Braziliense (DF):
"O ministro da Justiça, Tarso Genro, concedeu recentemente refúgio político ao italiano Cesare Battisti. A decisão tem suscitado reações que vão do aplauso à desaprovação contundente. O que não se pode afirmar é que seja contrária ao direito brasileiro e divergente das tradições que o Brasil cultiva em suas relações internacionais.
Battisti havia sido membro de grupo armado de extrema esquerda que praticou inúmeros crimes políticos no final da década de 1970. Na década seguinte, os seus militantes renunciaram à luta armada e muitos foram viver na França, onde obtiveram refúgio político. Era o caso de Battisti.
O refúgio na França não impediu que Battisti fosse julgado e condenado na Itália. Três circunstâncias básicas, pouco divulgadas em nosso país, fizeram com que esse julgamento não estivesse de acordo com as regras do Estado Democrático de Direito.
Em primeiro lugar, no Estado de Direito, a defesa do acusado deve ser plenamente garantida. Por essa razão, o processo não pode seguir o seu curso se o réu não estiver presente para se defender. Foi justamente o que ocorreu com Battisti, que já vivia na França quando o julgamento ocorreu.
Em segundo lugar, a lei de exceção criada para combater a violência política, a Lei Cossiga, de 1981, foi aplicada retroativamente aos crimes imputados a Battisti, os quais teriam ocorrido entre 1977 e 1979. Isso, tampouco, é compatível com o Estado de Direito, em que vigora a irretroatividade da lei penal: "Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal".
Em terceiro lugar, a prova mais significativa constante dos autos era o depoimento de um ex-membro de seu grupo armado, que o havia delatado em troca de vantagens no processo: uma delação premiada, prática aceita em outros países, mas polêmica entre nós.
A Itália da década de 1970 era um Estado Democrático de Direito, e a insurreição armada não se justificava. Mas o governo italiano, ainda assim, não podia se afastar do Estado Democrático de Direito para reprimir os insurgentes. Quando está em jogo a liberdade individual, os fins não podem justificar os meios.
Não por outra razão, o presidente dos Estados Unidos recém-empossado, Barak Obama, em seus primeiros atos de governo, determinou o fechamento da prisão de Guantánamo e de outras prisões secretamente mantidas pela CIA em outros lugares do mundo, além de proibir que a tortura continuasse a ser praticada pelo Estado norte-americano.
O ministro da Justiça considerou ainda evidente que Battisti foi condenado pela prática de crimes políticos. O próprio ex-presidente italiano Francesco Cossiga, que deu nome à legislação de exceção aplicada ao caso de Battisti, reconheceu que o crime tinha natureza política, apesar de lembrar que, na Itália, essa é uma circunstância agravante.
Mas, no direito brasileiro, o artigo 77 do Estatuto do Estrangeiro determina que "não se concederá extradição (...) quando o fato constituir crime político". O ministro da Justiça é a autoridade competente para conceder o refúgio, e sua decisão não é estranha às melhores tradições do direito brasileiro. É apenas mais um episódio de uma longa história de concessão de asilo e refúgio político que beneficia estrangeiros vinculados às mais variadas filiações ideológicas.
Não era diferente o entendimento que o governo francês, a partir de François Mitterrand, mantinha sobre o caso. Apenas durante o governo de Jacques Chirac, por forte pressão da direita francesa, a orientação foi modificada.
A Itália tem todo o direito de protestar contra a decisão do governo brasileiro. O Brasil também protestou quando a Itália lhe negou a extradição de Salvatore Cacciola, que aqui fora acusado de crimes financeiros gravíssimos. A decisão italiana, no entanto, foi tomada de acordo com a lei e pelas autoridades competentes. O Brasil tinha que respeitá-la, ainda que sob protestos.
Assim se processam as relações internacionais. Não será agora, pela decisão de conceder asilo a Battisti, que a Itália deixará de respeitar a soberania do Brasil. Na história de convívio entre as nações, por vezes, esses desacordos se estabelecem e são normalmente resolvidos por meio do diálogo e da cooperação."