Decreto ultrapassou limite da Lei de Crimes Ambientais
Por Edgard Dagher SamahaO presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva, em 21 de junho de 2008, fez publicar o Decreto 6.514/2008, que deu nova regulamentação à Lei de Crimes Ambientais (9.605/98), na parte de infrações e sanções administrativas, substituindo e revogando o Decreto 3.179/99.
Ocorre que esse decreto presidencial foi considerado por diversos juristas, especialistas do Direito Ambiental e demais áreas do Direito, como inconstitucional, tendo em vista inovar procedimentos e criar sanções, contrariando e, portanto, sendo infiel à sua Lei de origem (Lei de Crimes Ambientais), à qual deve total respeito, conforme preconiza o artigo 84 da Constituição Federal, senão vejamos:
“Artigo 84 - Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
IV – Sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (...)
VI – dispor, mediante decreto, sobre:
a) Organização me funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação e extinção de órgãos públicos;
b) Extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;”
Após sofrer inúmeras críticas e pressões setoriais, ao longo de todo o segundo semestre de 2008, a exemplo do setor ruralista que reivindicou modificações quanto à reserva legal, o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, confessou a existência de dispositivos irregulares no Decreto 6.514/2008 e prometeu alterar tudo aquilo que extrapolasse os limites da Lei de Crimes Ambientais.
No final do ano de 2008, mais especificamente em 10 de dezembro de 2008, cumprindo com a palavra do ministro Minc, o presidente Luis Inácio Lula da Silva fez publicar o Decreto 6.686/2008, uma leve correção das barbáries contidas no Decreto 6.514/2008.
“Leve” porque esse recente decreto não passa de uma maquiagem. Seu volume gigantesco de correções insignificantes dá a impressão ao cidadão brasileiro de que houve modificações consistentes. No entanto, ao analisar minuciosamente a nova redação do Decreto 6.514/2008, verifica-se que grande parte das irregularidades continua em vigor.
Percebe-se, outrossim, que as alterações trazidas pelo Decreto 6.686/2008, são, em sua maioria, aquelas que foram levadas ao conhecimento do público pelos diversos meios de comunicação, como jornais, internet, rádio etc. A razão para isso é clara. O governo jamais iria admitir que cometera o erro gravíssimo de publicar um decreto que vai totalmente de encontro com sua Lei de origem. É muita humilhação curvar-se perante essa hipótese. Por isso, é bem mais fácil e politicamente vantajoso (ao invés de revogar o decreto ou corrigir todas as ilegalidades) modificar somente aquelas problemáticas que causaram mais polêmica, ou seja, as que foram veiculadas pela mídia.
Fato é que o Decreto 6.514/2008 mantém inúmeras ilegalidades vigentes, que, até o momento, não foram contestadas nem chegaram ao conhecimento da mídia, por não terem, ainda, causado pânico à população, e, portanto, não serem manchete interessante para divulgação, nem, contudo, preocupação para o governo. No entanto, com a fiscalização ambiental cada dia mais presente, certamente, esse dia chegará e, infelizmente, será tarde demais.
Diante desse contexto, é de peculiar estranheza que nenhuma entidade, até hoje, ajuizou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade junto ao Supremo Tribunal Federal, para tentar derrubar esse polêmico decreto. Certamente há muitos interesses políticos em jogo. Ninguém quer correr o risco de ser bombardeado por ONGs sócio-ambientalistas e considerado como vilão perante a sociedade.
Os cidadãos brasileiros deveriam entender que, com a manutenção do Decreto 6.514/2008, o que está em jogo não é o meio ambiente e sim a segurança jurídica da população. O meio ambiente tem respaldos legais suficientes para ser preservado. Ao menos no Brasil. Basta haver uma aplicação direta e eficiência. Nossa legislação ambiental é uma das mais complexas e modernas do mundo. É tida como modelo por diversos países.
Não podemos aceitar que nossas leis sejam ignoradas pelo governo, com seus limites ultrapassados, como ocorreu com a Lei de Crimes Ambientais. Se nos quedarmos calados frente a essas aberrações, as portas para a ditadura poderão ser novamente abertas. Devemos respeitar e valorizar nossa Constituição Federal e as leis federais, estaduais e municipais, para que o sistema democrático de Direito prevaleça.
Pena de Perdimento dos veículos transportadores
Como são volumosas as irregularidades trazidas pelo Decreto 6.514/2008 (e que não foram alteradas pelo Decreto 6.686/2008), para não tornar este texto muito cansativo, falarei somente de uma delas, a pena de perdimento dos veículos transportadores, utilizados no cometimento de supostas infrações ambientais.
A Lei de Crimes Ambientais traz, em seu artigo 72, como uma das penas a serem aplicadas aos infratores, a de “apreensão dos animais, produtos e subprodutos da biodiversidade, inclusive fauna e flora, instrumentos, petrechos, equipamentos ou veículos de qualquer natureza utilizados na infração”.
O Decreto 3.179/99, revogado pelo atual e inconstitucional Decreto 6.514/2008, regulamentava a forma de aplicação da pena de apreensão de veículo utilizado na infração, da seguinte forma:
“Art. 2º - As infrações administrativas são punidas com as seguintes sanções:
§ 6º - A apreensão, destruição ou inutilização, referidas nos incisos IV e V do caput deste artigo, obedecerão ao seguinte: (...)
VIII - os veículos e as embarcações utilizados na prática da infração, apreendidos pela autoridade competente, somente serão liberados mediante o pagamento da multa, oferecimento de defesa ou impugnação, podendo ser os bens confiados a fiel depositário na forma dos arts. 1.265 a 1.282 da Lei no 3.071, de 1916, até implementação dos termos antes mencionados, a critério da autoridade competente;”
O pagamento da multa, como condicionante para o infrator reaver o veículo apreendido, era procedimento coerente e legal, suficiente para rechaçar novos cometimentos de infrações por parte do infrator.
Agora, a máxima atenção para a redação do Decreto 6.514/2008, no que tange à destinação do veículo apreendido, caso, ao final do processo administrativo, a infração seja confirmada pelo órgão ambiental:
“Art. 134. Após decisão que confirme o auto de infração, os bens e animais apreendidos que ainda não tenham sido objeto da destinação prevista no art. 107, não mais retornarão ao infrator, devendo ser destinados da seguinte forma:
V - os demais petrechos, equipamentos, veículos e embarcações descritos no inciso IV do art. 72 da Lei nº 9.605, de 1998, poderão ser utilizados pela administração quando houver necessidade, ou ainda vendidos, doados ou destruídos, conforme decisão motivada da autoridade ambiental.”
Peço atenção ao caput do artigo 134 que prevê, com todas as palavras, que o veículo apreendido “não mais retornará ao infrator”, caso haja decisão que confirme o auto de infração. Ou seja, será aplicada uma pena nova, não prevista pela Lei 9.605/98: Pena de Perdimento.
Ora, essa penalidade é uma invencionice do Decreto 6.514/2008. A Lei de Crimes Ambientais jamais autorizou o órgão ambiental a aplicar esse tipo de sanção. A apreensão foi medida criada pela Lei para forçar o infrator a pagar o mais rápido possível pelo que fez. Depois de acertadas as contas, tinha o direito de reaver o bem.
Hoje, com a redação do Decreto 6.514/2008, a Pena de Perdimento passa a ser uma pena nova, que independe da prestação pecuniária. O infrator não tem escolha, além de pagar a multa, perderá seu bem para o órgão ambiental.
Antes de prosseguir, gostaria de deixar bem claro que não tenho intenção alguma de proteger os infratores. Se realmente cometeram infração ambiental, terão que pagar por isso; no entanto, dentro dos limites impostos pela Lei de Crimes Ambientais. Não posso quedar-me inerte frente à injusta, desproporcional e irrazoável pena de perdimento, introduzida pelo Decreto em comento, que, repito, nada mais traz à população do que insegurança jurídica, criando precedentes que permitem a modificação de nossas leis, por meio de despachos administrativos, a torto e a direito.
Para que o leitor entenda a ilegalidade aqui exposta, é importante que saiba que, na maioria das vezes, os veículos ora citados, sujeitos à Pena de Perdimento, são caminhões utilizados no transporte de madeiras. Caminhões cujos preços giram em torno de R$ 300 mil.
Imagine a seguinte situação: você é um renomado empresário do setor de papel e celulose do estado de São Paulo. Um cliente “X”, do estado de Santa Catarina, solicita uma quantidade “Y” de madeira, no valor de R$ 15 mil. Para fazer o transporte da madeira, você é obrigado a emitir uma Guia Florestal, com especificações sobre o destino e o volume da madeira a ser transportada, que acompanhará a carga até seu destino final. Essa Guia Florestal terá um prazo de validade “V”. Durante o transporte, dentro do estado de Santa Catarina, inicia-se uma tempestade furiosa, que acarreta no desabamento de uma encosta e, conseqüentemente, no bloqueio da estrada, fazendo com que o caminhão fique parado por alguns dias. No transcorrer desse tempo, o prazo de validade da Guia Florestal expira, antes de chegar a seu destino. Por azar, um analista ambiental, que passava pelo local, solicita ao motorista a Guia Florestal e constata a irregularidade. Seu caminhão será apreendido, levado ao pátio do órgão ambiental e iniciado um processo administrativo. Se, ao final desse procedimento, a infração ambiental for confirmada, será paga uma multa elevadíssima e o caminhão (com valor de R$ 300 mil) não mais retornará a você, podendo ser doado, destruído, vendido e, até, utilizado pela administração pública. Isso é Pena de Perdimento. Lembre-se, a carga custava R$ 15 mil e o caminhão R$ 300 mil.
A Pena de Perdimento não pode prevalecer no Decreto 6.514/2008, por ser sanção não prevista na Lei de Crimes Ambientais, além de, tendo em vista verificarmos no dia a dia do Direito Ambiental que há uma diferença gritante entre o valor da carga apreendida e do veículo transportador, ser sanção que vai totalmente de encontro com entendimento uníssono do Poder Judiciário, a exemplo do seguinte julgado do Superior Tribunal de Justiça:
“RECURSO ESPECIAL - ADMINISTRATIVO - CONTRABANDO DE DOIS RIFLES - APREENSÃO DE VEÍCULO - PENA DE PERDIMENTO DE VEÍCULO CUJO VALOR É QUATRO VEZES SUPERIOR AO DOS RIFLES - NÃO CABIMENTO - APLICAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E RAZOABILIDADE. Esta Corte Superior de Justiça pacificou o entendimento segundo o qual é "inadmissível a aplicação da pena de perdimento do veículo, quando evidente a desproporção entre o seu valor e o da mercadoria de procedência estrangeira apreendida" (REsp n. 109.710/PR, Rel. Min. Hélio Mosimann, DJ de 22.04.97). Na hipótese em exame foi apreendido veículo no valor de R$ 4.000,00 (quatro mil reais), enquanto os dois rifles contrabandeados equivaliam, em conjunto, a R$ 1.000,00 (mil reais). Dessa forma, em respeito aos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, não deve ser aplicada ao caso dos autos a pena de perdimento, uma vez que o valor das mercadorias contrabandeadas é muito inferior ao valor do veículo. Recurso especial ao qual se nega provimento.”
(REsp 508322 / PR – RECURSO ESPECIAL 2003/0040545-2, julg. 14/10/2003, Ministro FRANCIULLI NETTO)
Considerações finais
Esta é somente uma das inúmeras aberrações jurídicas, criadas pelo Decreto 6.514/2008, que ultrapassaram os limites da Lei de Crimes Ambientais.
Fato é que a modificação de uma Lei não é atribuição afeta ao Presidente da República, e sim ao Poder Legislativo. O Decreto Presidencial que regulamenta uma Lei deve respeitar todos os seus limites.
Para a realidade das infrações ambientais, a pena de perdimento dos veículos transportadores é medida injusta e desproporcional, sendo, portanto, inaplicável.
Àqueles que vierem a sofrer esse tipo de privação de bens, aconselho consultar uma acessória jurídica, a fim de impetrar Mandado de Segurança, para tentar reaver o veículo.
Já, para o governo sugiro o quão antes possível, a alteração desse artigo, voltando a ser aplicado o pagamento de multa como condicionante para o infrator retirar seu veículo, conforme era previsto no Decreto 3.179/99, que foi revogado pelo Decreto 6.514/2008.
Não podemos nos calar frente a gafes como essas, em que um simples despacho presidencial diário, que, muito provavelmente, não passou pelo crivo de especialistas do Direito Administrativo, Constitucional e Ambiental, ignora os limites de uma Lei, norma sólida, inteligente, que passou pelo complexo trâmite de um processo legislativo, sendo longamente discutida por senadores, deputados, vereadores e renomados juristas.