Mesmo com falhas, Brasil é referência na OIT
Por Rodrigo Haidar
Nos quesitos de combate ao trabalho escravo e erradicação do trabalho infantil, as políticas adotadas pelo Brasil são referência junto aos organismos internacionais. As fórmulas aplicadas são muito bem vistas pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Mas o fato de o Brasil não ratificar as Convenções 87 e 158 da OIT causam estranheza e fazem o país caminhar na contramão da comunidade internacional. É o que afirma o ministro Lelio Bentes, do Tribunal Superior do Trabalho.
Perito da OIT há três anos — o ministro está em pleno processo de recondução —, Bentes tem relatos do ambiente de trabalho de todos os cantos do mundo e, deste posto privilegiado, atesta: “O Brasil não ratificar convenções que gozam de especial prestígio causa uma mancha na trajetória do país em relação às normas internacionais do trabalho”.
Em entrevista à revista Consultor Jurídico concedida em seu gabinete no TST, o ministro contou casos onde a ajuda financeira pontual a populações carentes aliada a programas de qualificação profissional mudaram o mercado de trabalho em pequenas localidades. Ele também apontou casos alarmantes de desrespeito à liberdade de trabalho. “Não podemos perder de vista que o direito ao trabalho é um direito humano. A própria Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece como direito fundamental do ser humano o direito ao trabalho.”
Lelio Bentes explicou como funciona a Comissão de Peritos da OIT e com quais mecanismos conta para fazer com que os países cumpram as convenções ratificadas, já que a OIT não tem poder de sanção. A Comissão de Peritos — composta por 20 juristas independentes de todos os continentes — se reúne sempre no fim do ano, da última semana de novembro ao fim da primeira quinzena de dezembro, e discute os casos de descumprimento das normas internacionais que fixam o padrão mínimo das garantias de trabalhadores.
Leia a entrevista
ConJur — Como a Comissão de Peritos fiscaliza o cumprimento das normas da OIT?
Lelio Bentes — A comissão recebe relatórios dos países que ratificaram as convenções. Os relatórios são apresentados pelos governos, mas são previamente comunicados a trabalhadores e empregadores, que também podem mandar seus comentários. Os peritos examinam esse material e preparam observações quanto à adequação da legislação e da prática nacional em face da norma internacional ratificada. Pode-se chegar à conclusão de que a norma está sendo adequadamente implementada ou pode-se concluir que há deficiência na implementação. Nesse caso, os peritos chamam a atenção do país para a necessidade de adotar as medidas necessárias à correta aplicação da norma internacional.
ConJur — Pode-se dizer que a Comissão de Peritos é uma espécie de Supremo Tribunal Internacional do Trabalho?
Lelio Bentes — Não, porque não cumpre função jurisdicional, nem tem o poder de impor sanções. Pode-se dizer, porém, que a Comissão de Peritos é uma fonte de interpretação autêntica das normas internacionais porque é composta por juristas independentes. As observações da Comissão de Peritos são submetidas à Comissão de Normas, que é tripartite e se reúne durante a Conferência Internacional do Trabalho da OIT, em Genebra, sempre no mês de junho. Essa comissão escolhe, entre mais de dois mil casos examinados anualmente pela Comissão de Peritos, cerca de 30 casos mais relevantes para uma discussão pública.
ConJur — O Brasil ratificou e cumpre as convenções da OIT?
Lelio Bentes — Em termos de ratificação das normas internacionais do trabalho, o Brasil tem uma trajetória bastante respeitável. Entre as quase 200 convenções da OIT, há oito que são consideradas fundamentais porque dizem respeito aos princípios essenciais à dignidade do trabalhador. São princípios reconhecidamente de direitos humanos: a erradicação do trabalho infantil, do trabalho escravo, o fim da discriminação no trabalho, seja com base em gênero, etnia ou cor da pele, e a liberdade sindical e de negociação coletiva. Das oito convenções fundamentais, o Brasil ratificou sete.
ConJur — Qual não ratificou?
Lelio Bentes — Justamente a Convenção 87, que goza de prestígio especial na OIT. Ela assegura a liberdade dos trabalhadores de escolher o sindicato a que vão se filiar e a forma como vão se organizar e defender seus interesses. Para a OIT, essa convenção é a que viabiliza a defesa de todos outros direitos. Eu costumo dizer que, entre as convenções fundamentais, ela é "a" convenção fundamental. O fato de não ratificar a Convenção 87 é uma mancha na trajetória do Brasil em relação às normas internacionais do trabalho. Se tivermos em conta que essa convenção é uma das mais ratificadas por todos os países membros da OIT, fica claro que o Brasil está na contramão da comunidade internacional.
ConJur — Além do Brasil, há outros países que não ratificaram essa convenção?
Lelio Bentes — O Brasil está na companhia, entre alguns poucos outros, dos Estados Unidos, Índia, China e Irã. O problema é que esses cinco países respondem por aproximadamente 50% da mão-de-obra do mundo. Ou seja, a convenção é altamente ratificada pela comunidade internacional, mas a falta da ratificação desses cinco países compromete consideravelmente a efetividade desse instrumento fundamental. Assim, embora o Brasil tenha um histórico bastante razoável em termos de ratificação das normas internacionais, essa omissão contribui para o enfraquecimento de um dos pilares sobre os quais se erige toda a estrutura da OIT, que é relacionada à liberdade de exercício da atividade sindical e de associação.
ConJur — E o Brasil efetivamente aplica as convenções ratificadas?
Lelio Bentes — Neste quesito, o Brasil está em uma posição intermediária. Não se constatam muitos casos de descumprimento escabroso das normas internacionais. Há dificuldades aqui e ali, necessidade de aperfeiçoamento. Mas, como regra, o governo brasileiro estabelece um diálogo bastante produtivo com a Comissão de Peritos.
ConJur — A comissão pode impor sanções?
Lelio Bentes — Não. Nem a OIT impõe sanções. A comissão procura, por meio do diálogo, mostrar ao país que a sua prática está em desconformidade com a norma internacional e alertá-lo ou convencê-lo a se socorrer dos meios disponíveis para que possa corrigir aquela situação. Para isso, a OIT coloca à disposição dos países o serviço de assistência técnica. Muitas vezes, os países não cumprem as normas por absoluta falta de capacidade técnica. Alguns países recebem treinamento para implementar as normas. O Brasil mesmo já recebeu treinamento, por exemplo, para formar servidores públicos com capacidade de preencher os relatórios a serem enviados à OIT, que são muito detalhados. Muitos países carecem de recursos mínimos. Outros encontram-se em situação de conflito interno, guerras civis ou se recuperando de tais situações. A Comissão de Peritos leva tudo isso em consideração, mas a sua visão é sempre jurídica. O que se busca, embora compreendendo as dificuldades pelas quais passa cada país, é consagrar uma "jurisprudência" sólida, coerente no sentido de esclarecer quais são as obrigações que cada convenção implica a partir do momento da sua ratificação.
ConJur — Mas se nem a comissão e nem a OIT podem impor sanções, o que se pode fazer para que o país cumpra a norma?
Lelio Bentes — O trabalho da Comissão de Peritos é feito com base no princípio da boa-fé. Parte-se do pressuposto de que os países efetivamente, quando ratificam uma norma internacional, têm o interesse ou a determinação de pô-la em prática. Se isso não acontece e o diálogo não surte efeito, utiliza-se o caminho da coação moral. A própria discussão do caso publicamente durante a Conferência da OIT, onde estão presentes representantes de trabalhadores, empregadores e governo dos 184 países-membros, já constitui uma espécie de sanção moral. Vemos com freqüência os países buscarem soluções às vésperas da conferência.
ConJur — Isso já aconteceu com o Brasil?
Lelio Bentes — Já, no começo da década de 90, com relação ao trabalho escravo. O Brasil não reconhecia o trabalho forçado como um problema. Havia denúncias, a Comissão de Peritos pedia informações e a resposta brasileira era sempre a mesma: “Não há trabalho forçado no Brasil”. Até que, diante das evidências apresentadas por organismos representativos de trabalhadores, criou-se um clima favorável à discussão do tema publicamente em determinada conferência da OIT. O Brasil, então, admitiu a existência do trabalho forçado e se comprometeu a adotar as medidas necessárias para combater essa mazela. O fato é que, a partir daí, a situação evoluiu muito. Sob a ótica do trabalho forçado, o país é visto pela OIT, hoje, como um exemplo a ser seguido. Acima de tudo por ter adotado práticas inovadoras, como a condenação dos empregadores encontrados em situação de explorar o trabalho forçado e a imposição de indenização por danos morais coletivos.
ConJur — Há outros bons exemplos brasileiros?
Lelio Bentes — Sim. A política brasileira no combate ao trabalho infantil também é vista com muito interesse pela comunidade internacional. O Brasil conseguiu, de 1995 a 2002, reduzir praticamente pela metade o trabalho infantil e fazer com que 98% das crianças em idade escolar fossem matriculadas. São resultados muito expressivos, obtidos a partir da adoção de políticas de subsídio às famílias mais carentes para que as crianças pudessem freqüentar a escola. Todavia, como cidadão, distanciando-me da condição de perito da OIT, ainda me ressinto ainda da ausência de uma política pública mais clara e definida quanto às outras etapas do processo que deve culminar com a independência econômica dessas famílias carentes. O subsídio é absolutamente justificável e necessário a fim de que se permita às famílias mais empobrecidas o mínimo de dignidade, de forma imediata. Mas é precioso pensar nas soluções de longo prazo. Grande parte das famílias hoje atendidas por essas políticas de subsídios retorna imediatamente à pobreza se o governo resolve, por qualquer motivo, cortar o programa. A política de subsídios tem de vir conjugada com a qualificação profissional dos adultos, a criação de oportunidades de emprego e renda na localidade onde eles vivem. Isso não tem sido feito, pelo menos com a amplitude necessária.
ConJur — Há exemplos de lugares onde a ajuda financeira aliada à qualificação deu certo?
Lelio Bentes — Um exemplo interessante é o do município de Retirolândia, na Bahia. A comunidade vivia em torno da produção do sisal, uma atividade perigosa porque não se trata de mero extrativismo. Há o processo de beneficiamento da folha do sisal para a extração das suas fibras e esse processo se dava mediante uso de maquinário completamente rudimentar, sem a menor condição de segurança. O trabalho já custou dedos, mãos e até braços de adolescentes da comunidade. O escritório da OIT no Brasil tinha uma pequena verba de US$ 5 mil e discutia a melhor forma de utilizá-la na região. Foram surgindo as ideias típicas do nosso universo de gabinetes com ar condicionado: campanhas de conscientização, cartazes, seminários. Mas um dos responsáveis teve a feliz idéia de contatar um dos líderes da comunidade, de quem recebeu o pedido de que aquele dinheiro fosse todo empregado na compra de bodes e cabras.
ConJur — O pedido não causou estranheza?
Lelio Bentes — Todos ficaram surpresos. Mas, como era o pedido da comunidade, foi atendido. O sindicato recebeu as matrizes da OIT e doou uma cabra e um bode para cada família. Nesse momento, a família assumia dois compromissos. Primeiro, enviar todas as crianças à escola e não permitir que trabalhassem. Segundo, quando o casal de animais procriasse, devolver um casal de filhotes para o sindicato para que outra família pudesse ser beneficiada. Os resultados foram fantásticos. O primeiro resultado visível foi a queda abrupta do índice de desnutrição porque as crianças passaram a se alimentar de leite de cabra. Segundo, o excedente da produção de leite permitiu às famílias fabricar queijo para vender na feira, o que movimentou a economia local e praticamente acabou com o trabalho infantil, de forma sustentável. O projeto ficou conhecido como "bode-escola". O que é brilhante nesse caso é a demonstração de que nenhuma política pode ser elaborada em um país de dimensões continentais como o nosso a partir de cabeças, por mais coroadas que sejam, trancadas em um escritório no Planalto Central. É necessário levar em consideração a vocação de cada localidade e saber qual a qualificação e a capacidade de desenvolver determinados projetos das pessoas a que se destina o projeto.
ConJur — Não adianta chegar com soluções prontas.
Lelio Bentes — Não. E há outros exemplos que mostram a necessidade de quebrar paradigmas. A construção de cisternas em algumas regiões do Nordeste também mostrou isso. Um estudo científico criterioso derrubou a ideia já enraizada de que o problema do Nordeste era a falta de chuvas. O trabalho demonstrou que chuva havia, quase tanto quanto em outras regiões. O problema é que o período de chuvas é muito curto. O que fazer? Coletar a água das chuvas e guardar para utilização no decorrer do ano. Foi apresentada uma proposta de fornecimento de grandes cisternas de fibra de vidro, a um custo mais baixo do que as cisternas de alvenaria. Novamente, tomou-se o cuidado de ouvir a comunidade. Concluiu-se que o processo de construção da cisterna de alvenaria, que se dava mediante mutirão, constituía uma forma importante de envolvimento da comunidade com aquele patrimônio. O pensamento é simples: “Se eu ajudei a construir a cisterna, vou cuidar, vou evitar que ela rache, porque, se rachar, é o meu trabalho desperdiçado. Mas se a cisterna de fibra que o governo me dá rachar, problema do governo. Até porque eu nem sei como evitar que ela rache ou consertá-la”. Optou-se pela cisterna de alvenaria, ainda que um pouco mais cara, pela sustentabilidade do projeto.
ConJur — Há situações dramáticas com as quais o senhor se deparou como perito da OIT?
Lelio Bentes — Há algum tempo, a Conferência da OIT tem discutido a situação de dirigentes sindicais em dois países latino-americanos: Colômbia e Venezuela. No caso da Venezuela, a denúncia é de restrição à criação de organizações sindicais representativa de empregadores e de patrulhamento ideológico sobre os sindicatos. Já no caso da Colômbia, a denúncia é de assassinato de dirigentes sindicais. Em 2007, mais de 60 dirigentes sindicais colombianos foram assassinados por forças paramilitares que, segundo denúncia dos sindicatos, operariam com a complacência do governo. Outro caso também bastante significativo envolve comunidades indígenas na Colômbia. Há denúncia, ainda, de ameaças de limpeza étnica de populações indígenas por esses mesmos grupos paramilitares. Nesse passo, é importante frisar que a OIT é o único organismo do sistema das Nações Unidas que adotou tratado passível de ratificação sobre direitos das populações indígenas. É a Convenção 169, que já foi ratificada por mais de 20 países, inclusive pelo Brasil. Essa convenção estabelece o direito de as comunidades indígenas serem ouvidas em todas as decisões que digam respeito aos seus interesses.
ConJur — Os países em desenvolvimento são os que mais têm problemas para cumprir as normas?
Lelio Bentes — Há situações complexas — e algumas até curiosas — em todos os países, independentemente de seu grau de desenvolvimento. A Grécia foi alertada, há alguns anos, para o fato de que a Convenção 111, que trata do combate à discriminação no emprego, estava sendo desrespeitada. O país proibia o ingresso de mulheres nas forças armadas. Depois de muita conversa, o país adotou política de cotas: 20% do efetivo seria preenchido por mulheres. No início foi uma boa solução, pois quebrou-se um paradigma importante. Com o passar do tempo, porém, o sistema de cotas tornou-se ineficaz, porque limitava o ingresso de mulheres nas forças armadas. Isso levou a OIT a propor a abolição do sistema de cotas. O que levou o país, após novo período de discussões, a abrir mais uma vez o acesso das mulheres. Contudo, colocou-se um novo limitador. Os candidatos teriam de ter, no mínimo, 1,70m, independentemente das tarefas a serem desempenhadas. Ou seja, criou-se uma regra que excluía, indiretamente, as mulheres. O caso já foi submetido à Conferência da OIT, mas o diálogo prossegue.
ConJur — É difícil quebrar paradigmas.
Lelio Bentes — Muito. Há casos emblemáticos, sobretudo quando o tema se relaciona com a cultura local. O trabalho infantil é um tema riquíssimo sob esse aspecto porque muitas sociedades se acostumaram a ver o trabalho infantil não como um problema, mas como uma solução. Por muitos anos, no Brasil, se pensou que era melhor a criança trabalhar do que estar na rua. Revelou-se, depois, que o trabalho é um caminho para a rua e até para a criminalidade. Pesquisa conduzida em um presídio no interior de São Paulo constatou que 80% dos presos haviam trabalhado quando crianças. Na verdade, essa oposição entre rua e trabalho é um falso dilema. O dilema verdadeiro está na oposição entre rua e trabalho de um lado e, de outro lado, a escola. Essa construção cultural ocultava uma atitude discriminatória, porque, para os nossos filhos, para os filhos das classes média e alta, não há nem rua, nem trabalho constituem opções válidas.
ConJur — Como impor aos países normas internacionais, sem desrespeitar as culturas locais?
Lelio Bentes — É difícil. Essa é a questão que está na ordem do dia da discussão sobre os direitos humanos. Não podemos impor um modelo alienígena a determinado país. Por outro lado, os valores da preservação da vida, da proteção contra a tortura, da dignidade, precisam ser respeitados por todos.
ConJur — O senhor poderia citar casos em que ocorreram esse choque de culturas
Lelio Bentes — Isso fica claro em um exemplo de alguns países do oriente, onde um dos esportes que mais empolga a população é a corrida de camelos. Crianças são trazidas da África Subsaariana para atuar como jóqueis de camelo. Jóqueis na faixa dos seis aos oito anos de idade, a maioria contra a sua vontade, configurando uma situação de tráfico de seres humanos. Essas crianças são amarradas nos camelos, que disparam em uma corrida desajeitada e extremamente perigosa para os jóqueis. É comum ouvir os gritos das crianças, pedindo, horrorizadas, para que as tirem dali. Só que, quanto mais elas gritam, mais os camelos correm, porque se assustam — e os entusiastas do esporte se deleitam, em seus assentos confortáveis, à custa do terror dessas crianças. Ciente desses fatos a partir de denúncias, a OIT comandou um processo de discussão com esses países. Em alguns casos, crianças foram substituídas por robôs, que passaram a ser amarrados nos camelos. Hoje, a luta da comissão de peritos é para convencer esses países, que já se dispuseram a repatriar as crianças, da necessidade de lhes assegurar, no seu país de origem, acesso a educação e saúde. Até agora, não há ainda muito entusiasmo com a solução proposta.
ConJur — Todos os casos que o senhor cita dizem mais respeito a direitos humanos do que a Direito do Trabalho...
Lelio Bentes — Quando a OIT, em 1998, adotou a declaração dos princípios fundamentais do trabalho, a escritora norte-americana Virginia Leary escreveu que a organização levou 50 anos para se dar conta de que sua atividade cotidiana era promover os direitos humanos. E eu costumo dizer que a Justiça do Trabalho brasileira, após 63 anos, começa a despertar para essa realidade. Ao garantir a dignidade do trabalhador e condições mínimas de saúde, segurança e higiene no trabalho, o que se protege são os direitos fundamentais. O professor uruguaio Oscar Ermida Uriarte afirma que a grande revolução contemporânea do Direito do Trabalho aconteceu no momento em que o trabalhador se deu conta de que não se despe o paletó de cidadão para vestir o macacão de operário. Ele é cidadão trabalhador. Por isso, ele deve ter garantido o próprio emprego, porque quem depende do resultado da venda da sua força de trabalho para seu sustento e de sua família não pode ficar em uma situação de absoluta vulnerabilidade diante do poder econômico do empregador. Por isso a OIT adotou a Convenção 158, que o Brasil ratificou, mas denunciou em curtíssimo espaço de tempo.
ConJur — Essa é a convenção que proíbe demissão sem motivo?
Lelio Bentes — Na verdade, essa convenção proíbe a demissão arbitrária. Eu disse antes que há uma grande falha do Brasil em não ratificar a Convenção 87. Outra grande falha consiste exatamente em ter ratificado a Convenção 158, que vigorou no nosso país por dez meses, e depois ter denunciado. Não há situação comparável no Direito Internacional. É um recorde absoluto de curta duração de uma norma internacional. O pior é que a denúncia se deu com base na falsa premissa de que a convenção era incompatível com a Constituição Federal que, no seu artigo 7º, inciso I, estabelece proteção contra a despedida arbitraria, inclusive mediante uma indenização e outras medidas. Ora, não consta nada dispositivo constitucional referido que contradiga a Convenção 158, até porque o seu texto assegura a "proteção contra a despedida arbitrária" — exatamente o objetivo da convenção.
ConJur — Como ficaria, na prática, a demissão do trabalhador? O empresário não ficaria impossibilitado de demitir?
Lelio Bentes — Claro que não. Criou-se uma tremenda confusão em torno dessa convenção. Na verdade, a denúncia da Convenção 158 foi fruto de uma campanha de desinformação. Alardeou-se que ela engessava as relações de trabalho e que todos os empregados ganhariam plena estabilidade. Não é nada disso. A Convenção 158 estabelece que é vedada a demissão arbitrária do empregado e que não se considera arbitrária: 1) a demissão motivada por deficiência do empregado no exercício da sua atividade profissional; 2) motivada por situação econômica precária da empresa; 3) motivada em conduta ímproba ou indevida do empregado. Então, eu pergunto: Fora essas três situações, em que outra situação o empregador demite o empregado? Existe, na verdade, uma quarta possibilidade de demissão: quando o empregador demite deliberadamente com o intuito de se beneficiar da rotatividade da mão-de-obra para pagar um salário mais baixo para um novo empregado. Essa última hipótese, todavia, atenta contra a dignidade do trabalhador, precariza as condições de trabalho e deve, mesmo, ser repudiada por todos.
ConJur — Mas esse não é um raciocínio radical?
Lelio Bentes — Eu peço para quem acha essa ideia radical que visite os anais da discussão da reforma da Lei do Inquilinato, de que resultou a proibição da rescisão de contrato sem fundamento, acabando com a "denúncia vazia". Argumentou-se, na época, que o proprietário do imóvel, mais poderoso economicamente, não poderia simplesmente dizer para o inquilino: “Vá embora porque outra pessoa pagará mais pelo aluguel do imóvel”. Agora, troque os atores proprietário e inquilino por empregador e empregado. O cerne da discussão é o mesmo. E a denúncia vazia continua possível na relação de emprego.
ConJur — Então qual é a dificuldade?
Lelio Bentes — Penso que a maior dificuldade para a assimilação da Convenção 158 por parte de alguns segmentos empresariais reside num dispositivo tecnicamente secundário, mas muito importante da convenção, que determina que as razões da demissão serão comunicadas ao empregado por escrito e cada país deverá manter à disposição do empregado meios administrativos ou judiciais para revisão dos motivos alegados para a demissão. Ou seja, a palavra do empregador passa a ser passível de questionamento perante o Poder Judiciário. Esse é o motivo da resistência, a meu ver. Para alguns, não se pode admitir que a palavra do empregador seja questionada, muito menos o "direito potestativo"de demitir. No caso da Lei do Inquilinato, a mudança foi bem recebida porque atendia à classe média. Mas quando falamos em acabar com a denúncia vazia do contrato de emprego, não estamos alcançando só a classe média. O que detonou a fúria popular contra a Convenção 158 foi a afirmação de que a empregada doméstica não poderia ser demitida. “Na minha casa? Uma empregada com direitos?” É interessante como a classe média consegue ser cruel com os menos favorecidos. Nós vemos isso desde a revolução francesa. A classe média é, tradicionalmente, o motor das transformações, para o bem e para o mal.